segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ode a uma cadela

Enquanto caminhava da estação de trem de volta para casa, eu vi a lua cheia, brilhante, cercada de nuvens cinzentas. Pensei nos lobisomens, que, segundo as lendas mais tradicionais, não poderiam conter uma transformação ante essa visão, ainda que tão pálida sob o manto poluído da grande São Paulo. Depois pensei em Bear Grylls, um especialista em sobrevivência da TV, cuja técnica para descobrir se há lobos num ambiente selvagem é uivar para o alto e ver se eles respondem. E depois pensei em Duquesa.

Duquesa era uma cadela vira-latas, com algo de pastor alemão nos genes, que, quando foi adotada por minha família, no final de mil novecentos e noventa e oito, parecia um bicho de pelúcia de tão surreal que era sua aparência. Um animal pequeno, tímido e frágil, com cara tristonha de quem tem medo do que possam fazer consigo nesse lugar esquisito, com essas pessoas grandes e babonas que lhe cercam e alisam e apertam o tempo todo.

Nos dias seguintes, a tristeza e a timidez sumiram rapidamente e Duquesa virou uma cadela bagunceira e alegre, daquelas que têm medo, mas não vergonha. Tinha energia e força de sobra, arrastava-me pelas calçadas e frequentemente escapava da coleira quando eu a levava para dar umas voltas a pé pelo bairro. Enquanto outros cães gostam de bolinhas que lhes cabem nas bocas, ela brincava com minha bola de basquete, e acabou furando e depois rasgando a gorduchinha. Mas eu e minha irmã brincávamos com a cadela e o trapo rasgado de basquete assim mesmo, atirando a ex-esfera de um para o outro enquanto a bobinha Duquesa tentava pegá-la no ar.

Para Duquesa, tudo era brinquedo. Principalmente minhas meias e meus tênis que ela adorava morder – enquanto ainda estavam revestindo meus pés, diga-se de passagem. Sua pequena casa de madeira, com uma tira de papel colada sobre a entrada onde se lia seu nobre nome, ficava na garagem, mas ela gostava mesmo era de ficar dentro de casa, um território que, a não ser que um adulto a liberasse, lhe era proibido. Por isso eu tinha de abrir a porta com cuidado quando entrava, mas ela sempre se metia por entre minhas pernas e qualquer vãozinho da porta. Ainda filhotes, eu tinha medo de machucá-la fechando a porta ou pisando sobre alguma de suas fofas patas, e a danada acabava entrando. Levei algumas broncas por isso, porque ela sempre usava a casa como banheiro assim que corria para dentro.

Quando meus pais se separaram, Duquesa foi morar com meu pai. Na verdade, foi morar no escritório, porque nos primeiros tempos ele morava num apartamento e não havia como criá-la ali. Mas ela fazia companhia para o pessoal do trabalho, e mesmo para meu pai ou sua segunda esposa, que trabalhava com ele, quando algum deles ficava até mais tarde sozinho no escritório.

Depois do novo casamento, quando meu pai e minha madrasta se mudaram para uma casa, Duquesa foi com eles, e logo ganhou um novo companheiro, de nome Pascoal, cocker dourado com um moicano no alto da cabeça. Aliás, o alto da cabeça de Duquesa era engraçado, pois sempre houvera ali uma espécie de galo, deixando sua cabeça parecido com a de Pluto, melhor amigo de Mickey Mouse. Aliás, novamente, uma cadela também pode ser a melhor amiga do homem, ou do menino, no meu caso, quando tinha Duquesa por minha confidente e lhe sussurrava ao ouvido os nomes de garotas por quem eu achava estar apaixonado.

E já que se falou em amor, Duquesa e Pascoal acabaram ficando juntos, como é inevitável para dois cães tão bem apessoados sob o mesmo teto (ou quase, já que dormiam em casinhas separadas), e em duas ninhadas tiveram impressionantes doze filhotes. Doze. E estes foram doados a outras crianças, que eu esperava que amassem seus cãezinhos assim como eu amava os meus, e como eles se amavam. Duquesa e Pascoal passaram anos um ao lado do outro, envelhecendo juntos como um casal de namorados abençoado pelo destino.

Vieram os problemas da idade, é claro. Ele teve glaucoma, e problemas nos ouvidos, ela teve dificuldades com os pelos e, recentemente, enquanto ela se aproximava dos dezesseis anos (o que dá quase cento e doze em idade de cachorro, se não me engano), uma insuficiência renal que por fim acabaria levando-a à morte. Duquesa faleceu hoje, dezessete de fevereiro, depois de uma noite sendo medicada com dipirona, para que não sentisse dor, e sentindo, pouco a pouco, o fio da foice do ceifador a se aproximar de sua pele.

Eu não estou triste por ela, porque sem a menor sombra de dúvida era uma boa cadela e, se existir algo como um paraíso canino, com certeza ela foi para lá. Não estou triste por mim, porque sei que aproveitei com ela a juventude, e, mesmo nos encontrando pouco nos últimos tempos, éramos como velhos companheiros, saudosos de tempos passados em que dividíamos aventuras, um tempo em que éramos menos adultos e menos preguiçosos. E também menos mortos. Eu estou triste pelo mundo, que perdeu hoje um ser que jamais lhe fez mal, que só tinha bondade e pureza a lhe acrescentar.


Por isso, quando vi a lua, eu me lembrei da Duquesa, e pensei nela, e olhei para a lua por um tempo, vendo as nuvens passarem, e então uivei para o alto, com toda a força e todo o ar que pude juntar, até ouvir meu próprio uivo voltar ecoado da parede do galpão industrial ao meu lado. E pensei “Duquesa, onde quer que você esteja, se puder me ouvir, isso foi pra você. Descanse em paz, porque você merece, e obrigado por tudo.”

Um comentário:

  1. Que texto lindo amor, se la no céu canino fizerem transmissao traduzida ela vai ficar mt emocionada.

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