Enquanto caminhava da estação de trem de volta
para casa, eu vi a lua cheia, brilhante, cercada de nuvens cinzentas. Pensei
nos lobisomens, que, segundo as lendas mais tradicionais, não poderiam conter
uma transformação ante essa visão, ainda que tão pálida sob o manto poluído da
grande São Paulo. Depois pensei em Bear Grylls, um especialista em
sobrevivência da TV, cuja técnica para descobrir se há lobos num ambiente
selvagem é uivar para o alto e ver se eles respondem. E depois pensei em Duquesa.
Duquesa era uma cadela vira-latas, com algo
de pastor alemão nos genes, que, quando foi adotada por minha família, no final
de mil novecentos e noventa e oito, parecia um bicho de pelúcia de tão surreal que era sua aparência. Um
animal pequeno, tímido e frágil, com cara tristonha de quem tem medo do que
possam fazer consigo nesse lugar esquisito, com essas pessoas grandes e babonas
que lhe cercam e alisam e apertam o tempo todo.
Nos dias seguintes, a tristeza e a timidez
sumiram rapidamente e Duquesa virou uma cadela bagunceira e alegre, daquelas
que têm medo, mas não vergonha. Tinha energia e força de sobra, arrastava-me pelas
calçadas e frequentemente escapava da coleira quando eu a levava para dar umas
voltas a pé pelo bairro. Enquanto outros cães gostam de bolinhas que lhes cabem
nas bocas, ela brincava com minha bola de basquete, e acabou furando e depois
rasgando a gorduchinha. Mas eu e minha irmã brincávamos com a cadela e o trapo
rasgado de basquete assim mesmo, atirando a ex-esfera de um para o outro
enquanto a bobinha Duquesa tentava pegá-la no ar.
Para Duquesa, tudo era brinquedo.
Principalmente minhas meias e meus tênis que ela adorava morder – enquanto ainda
estavam revestindo meus pés, diga-se de passagem. Sua pequena casa de madeira,
com uma tira de papel colada sobre a entrada onde se lia seu nobre nome, ficava
na garagem, mas ela gostava mesmo era de ficar dentro de casa, um território
que, a não ser que um adulto a liberasse, lhe era proibido. Por isso eu tinha
de abrir a porta com cuidado quando entrava, mas ela sempre se metia por entre
minhas pernas e qualquer vãozinho da porta. Ainda filhotes, eu tinha medo de
machucá-la fechando a porta ou pisando sobre alguma de suas fofas patas, e a
danada acabava entrando. Levei algumas broncas por isso, porque ela sempre
usava a casa como banheiro assim que corria para dentro.
Quando meus pais se separaram, Duquesa foi
morar com meu pai. Na verdade, foi morar no escritório, porque nos primeiros
tempos ele morava num apartamento e não havia como criá-la ali. Mas ela fazia
companhia para o pessoal do trabalho, e mesmo para meu pai ou sua segunda
esposa, que trabalhava com ele, quando algum deles ficava até mais tarde
sozinho no escritório.
Depois do novo casamento, quando meu pai e
minha madrasta se mudaram para uma casa, Duquesa foi com eles, e logo ganhou um
novo companheiro, de nome Pascoal, cocker dourado com um moicano no alto da
cabeça. Aliás, o alto da cabeça de Duquesa era engraçado, pois sempre houvera
ali uma espécie de galo, deixando sua cabeça parecido com a de Pluto, melhor
amigo de Mickey Mouse. Aliás, novamente, uma cadela também pode ser a melhor
amiga do homem, ou do menino, no meu caso, quando tinha Duquesa por minha
confidente e lhe sussurrava ao ouvido os nomes de garotas por quem eu achava
estar apaixonado.
E já que se falou em amor, Duquesa e Pascoal
acabaram ficando juntos, como é inevitável para dois cães tão bem apessoados
sob o mesmo teto (ou quase, já que dormiam em casinhas separadas), e em duas
ninhadas tiveram impressionantes doze filhotes. Doze. E estes foram doados a
outras crianças, que eu esperava que amassem seus cãezinhos assim como eu amava
os meus, e como eles se amavam. Duquesa e Pascoal passaram anos um ao lado do
outro, envelhecendo juntos como um casal de namorados abençoado pelo destino.
Vieram os problemas da idade, é claro. Ele
teve glaucoma, e problemas nos ouvidos, ela teve dificuldades com os pelos e,
recentemente, enquanto ela se aproximava dos dezesseis anos (o que dá quase
cento e doze em idade de cachorro, se não me engano), uma insuficiência renal
que por fim acabaria levando-a à morte. Duquesa faleceu hoje, dezessete de
fevereiro, depois de uma noite sendo medicada com dipirona, para que não
sentisse dor, e sentindo, pouco a pouco, o fio da foice do ceifador a se
aproximar de sua pele.
Eu não estou triste por ela, porque sem a
menor sombra de dúvida era uma boa cadela e, se existir algo como um paraíso
canino, com certeza ela foi para lá. Não estou triste por mim, porque sei que
aproveitei com ela a juventude, e, mesmo nos encontrando pouco nos últimos
tempos, éramos como velhos companheiros, saudosos de tempos passados em que
dividíamos aventuras, um tempo em que éramos menos adultos e menos preguiçosos.
E também menos mortos. Eu estou triste pelo mundo, que perdeu hoje um ser que
jamais lhe fez mal, que só tinha bondade e pureza a lhe acrescentar.
Por isso, quando vi a lua, eu me lembrei da
Duquesa, e pensei nela, e olhei para a lua por um tempo, vendo as nuvens
passarem, e então uivei para o alto, com toda a força e todo o ar que pude
juntar, até ouvir meu próprio uivo voltar ecoado da parede do galpão industrial
ao meu lado. E pensei “Duquesa, onde quer que você esteja, se puder me ouvir,
isso foi pra você. Descanse em paz, porque você merece, e obrigado por tudo.”
Que texto lindo amor, se la no céu canino fizerem transmissao traduzida ela vai ficar mt emocionada.
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