segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Black Bloc



*Esta é uma obra de ficção, quaisquer semelhanças com pessoas, entidades, locais e eventos reais são mera coincidência, bitch*

Beatriz assistia assustada, ainda com dez anos de idade, enquanto sua mãe a puxava pela mão e se afastavam pela calçada da Avenida Paulista. De repente ouviu o cras característico de vidro sendo estilhaçado. A loja do McDonalds onde há pouco estivera comendo com a mãe estava sendo destruída à marretadas por um grupo de pessoas vestidas de preto, com capuzes e lenços no rosto. Era vinte de abril de dois mil e um, e os adeptos do Black Bloc faziam sua primeira aparição pública no Brasil, protestando, a seu modo agressivo, chocante e profundamente simbólico contra a aprovação da Área de Livre Comércio das Américas, uma política internacional amplamente criticada. Os manifestantes não machucaram ou sequer ameaçaram os clientes do restaurante, apenas destruíram sua fachada.

Outras fachadas de grandes lojas franquiadas multinacionais, e também agências bancárias, foram quebradas naquele dia, e Beatriz assistiu a boa parte das ações, enquanto a mãe tentava mantê-las longe da bagunça e em segurança até chegarem ao Metrô. Aquelas cenas jamais saíram da cabeça da menina, que desde pequena era acusada pelos pais e familiares por “pensar demais” e “nunca ficar feliz com nada”. Principalmente uma das figuras de preto, que brandia vigorosamente a pesada marreta de cabo longo contra a vidraça do McDonald’s. Apesar do rosto coberto, as curvas sob as roupas pretas e o tom característico de sua voz a bradar evidenciavam uma mulher. Para Beatriz, aquela era uma mulher que homem nenhum ousaria tentar intimidar ou agredir, e ela queria ser assim quando crescesse.

Com o tempo, descobriu o que era ser um Black Bloc e a ideologia anarquista e atuante da tática de protesto lhe caiu como uma luva. Até tentara sair como Black Bloc em pequenos protestos às vezes, mas normalmente acabava sozinha, e a força desta estratégia única de manifestação está justamente no coletivo, na massa de pessoas não identificáveis que ousavam pôr-se, com a cara coberta e a coragem evidente, entre os manifestantes comuns, pacíficos e a polícia repressora.

Mas em junho de dois mil e treze, prefeitos de várias cidades do Brasil optaram por aprovar um controverso aumento no valor das passagens de ônibus, trens e metrôs. Logo depois disso, nas grandes cidades, começaram algumas passeatas e ocupações de vias públicas em protesto contra os novos preços. O número de manifestações foi aumentando, e também a quantidade de cidades atingidas. Logo não eram mais apenas pequenos grupos, mas enormes multidões, e os vinte centavos acrescidos nas passagens eram só a gota d’água para toda uma miríade de insatisfações dos brasileiros contra sua administração pública. Algumas vezes, na Avenida Paulista, os protestos chegaram a contar com centenas de milhares de pessoas.

E no meio deles estavam os Black Blocs, que, vez ou outra, chegavam a ser cem ou duzentos. Parece pouco, mas uma vanguarda de cem ou duzentas pessoas de preto, encarando as tropas de choque das polícias pelo país inteiro conseguiam motivar outros participantes e até combater efetivamente a polícia, para minimizar os danos causados por ela nos manifestantes “civis”. No dia dez de junho, aconteceu um dos primeiros grandes protestos na Avenida Paulista, que foi fortemente reprimido pelo choque. Até na Alameda Santos, quem estava dentro da Livraria Cultura do Conjunto Nacional podia ver pelas grandes vidraças uma falange de policiais bem equipados investindo em linha contra os manifestantes. Lá no meio, de moletom preto, mochila nas costas, capuz e um lenço encharcado de vinagre sobre o nariz e a boca, Beatriz atingia o escudo de um policial com um pedaço de corrimão, tirado de uma das escadarias das estações de Metrô próximas, enquanto outros companheiros Black Blocs pichavam paredes, quebravam vidros e arremessavam pedras.

Da calçada, tentando encontrar esconderijos de onde pudesse sair ileso e ao mesmo tempo tirar algumas boas fotos, e talvez conseguir uma narrativa descente do que estava acontecendo, Tiago, um jornalista, viu quando Beatriz, já desvencilhada daquele policial, chutou de volta, gritando, uma bomba de gás lacrimogêneo que outro militar havia atirado. Parou no meio do movimento de agachar-se atrás de uma grande lixeira de concreto, encantado pela visão que teve de Beatriz. Ela era baixa, um metro e sessenta talvez, tinha seios pequenos que não faziam tanto volume no moletom preto, era um pouco gordinha e dona de um largo e bonito quadril, no topo de coxas e pernas bem delineadas. Brandia um cilindro de metal com a ponta quebrada que ele não sabia de onde era, e algumas mechas de cabelo ruivo escapavam do capuz e do lenço. Tiago só voltou à realidade quando uma bala de borracha jogou-o no chão ao acertar seu ombro quase que de raspão. Praguejando, ficou atrás da lixeira e tentou tirar uma foto de sua nova musa de preto, mas ela já havia corrido para longe.

No dia seguinte, quando chegou à redação, tentou escrever sobre o que tinha visto na noite anterior, mas nada lhe vinha à cabeça – a não ser Beatriz. Nem sabia o nome dela, mas sabia que jamais uma mulher havia o impressionado tanto, era muita fúria, muita coragem, muita ferocidade, algo que quase não condizia com as generosas curvas de seu corpo feminino. Imaginava-se lutando lado a lado com aquela mulher, como Will e Elizabeth em Piratas do Caribe. Sem conseguir resistir por mais tempo, escreveu uma curta matéria sobre a guerreira de preto, colocando no meio do texto algumas outras informações e reflexões sobre o momento que viviam. É claro que seu editor detestou o texto. Depois de um ano de estágio, após um concorridíssimo processo seletivo, Tiago finalmente fora efetivado na equipe da revista Veja, um sonho que alimentava há muito tempo.

Porém, agora esse sonho não parecia significar mais nada. Depois do fim de semana abandonou a Editora Abril e passou a se dedicar a cobrir, independentemente, a onda de protestos que acontecia em São Paulo, sua ideia era manter um tipo de “blog dos protestos”, e talvez escrever um livro-reportagem quando tudo acabasse. Mas no fim das contas isso era só uma desculpa para ir atrás de Beatriz, que ele passou a procurar em todos os protestos, fotografar e registrar as ações para contar em seus textos depois. Tiago se tornara obcecado por ela, mas não tinha coragem de ir falar diretamente com sua paixão platônica.

Depois que a maioria das prefeituras revogou o aumento das passagens o contingente dos protestos diminuiu consideravelmente, mas ainda assim muitos iam para as ruas, incluindo Beatriz e os Black Blocs. Sem liderança oficial, com as datas e locais de suas ações combinados e divulgados na internet, os homens e mulheres de preto mantinham sua resistência, seja em interdições na Avenida Paulista ou acampamentos no Congresso Nacional e em frente à residência do Governador do Rio de Janeiro. Os Black Blocs continuaram atuando, arautos da anarquia e da insatisfação pública. Rotulados como “vândalos violentos” pela mídia, e toda sorte de adjetivos depreciativos como “arruaceiros”, “baderneiros” e alguns até foram presos por formação de quadrilha armada – um crime inafiançável.

Quase três meses depois de os protestos começarem, chegou o Dia da Independência, sete de setembro, e desde cedo os Black Blocs, entre outros manifestantes, já se concentravam no vão livre do MASP. Claro que Beatriz estava lá, ela adorava a ação das manifestações, sentia-se viva e livre, lutando, com as próprias mãos, por um país melhor. Tiago continuava seguindo a garota, ainda tirando fotos, sem saber o que fazer para falar com ela. Como um homem normal e medroso como ele poderia tomar a iniciativa de puxar conversa com uma mulher tão forte e imponente? Mas ainda assim não conseguia se afastar dela, era atraído por seus olhos castanhos de caçadora, com sobrancelhas crispadas, pelo fogo de seus cabelos, como se o próprio ardor de seus ideais escapasse de sua mente.

No sete de setembro, as manifestações já eram esperadas, e as autoridades mandaram duzentos e cinquenta policiais militares para a Avenida Paulista. Isso não intimidou os Black Blocs, de maneira alguma, e assim que a polícia tentou conter o avanço dos manifestantes pela Avenida, lá estavam os anarquistas de preto, novamente à frente de todos, com armas e projéteis improvisados, confrontando os escudos de ferro, cassetetes e balas de borracha. Após o primeiro choque, Tiago se esforçou para manter a mira de sua câmera em Beatriz, mesmo quando as fileiras de negro se quebraram contra as da polícia. E assim permanecia em seus cantos semiprotegidos, acompanhando a história enquanto era feita, pelas belas mãos e pernas de uma mulher.

Mas desta vez haviam muitos policiais. Pelo menos um para cada Black Bloc, e logo os anarquistas estavam perdendo, tendo de fugir e constantemente se reagrupar uns aos outro para não serem completamente subjugados. Beatriz foi atingida por um cassetete e teve de se apoiar em um joelho para não cair, mas quando o policia que a acertara investiu novamente ela o surpreendeu com um soco no rosto, o policial caiu no asfalto ,cassetete e capacete se soltaram e rolaram pela avenida. Para reagir depressa, antes que Beatriz lhe atingisse de novo, sacou do da cintura um revólver que deveria estar carregado com balas de borracha como os de seus companheiros, mas quando o tiro atingiu a Black Bloc no peito, ela não caiu para trás como o repórter caíra na noite em que a viu pela primeira vez. A bala entrou em seu peito, e um filete de sangue escapou por sobre o moletom enquanto ela desmontava sobre os joelhos, e por fim caía de bruços no chão. Enquanto o policial, ainda em frenesi, mantinha o revólver apontado para o nada.

Tiago assistiu a tudo, incrédulo. Quando viu o homem atirar não se conteve mais, gritou e saiu correndo por entre a batalha que ainda se desenrolava. Segurando a pesada câmera pela correia de segurança, atingiu com ela a cabeça do policial assassino, e ele caiu a seu lado quando a câmera se estraçalhou no impacto. Depressa, se atirou por sobre Beatriz e virou-a de barriga para cima, seus olhos castanhos estavam abertos e vazios, com um deles inchado devido ao golpe, uma poça de sangue já se formava embaixo de seu corpo e algumas pessoas, de ambos os lados, já paravam as agressões ao perceber que a menina estava morta.


Chorando, Tiago tirou o lenço do rosto dela, e pela primeira vez viu seu nariz e sua boca, que estava suja de sangue. Seu nariz era fino e delicado, condizente com a boca pequena e cor-de-rosa, com uma pinta sobre o lábio superior, do lado esquerdo. Ele a abraçou, tentando ouvir ou sentir respiração, mas não havia mais vida nela. Delicadamente, fechou suas pálpebras e afagou seu rosto inchado. Sentindo um imenso remorso e arrependimento por não ter sequer tentado conhecê-la quando podia, segurou o lenço dela com as duas mãos, dobrando o na diagonal, depois cobriu com ele o próprio rosto e tossiu quando o cheiro do vinagre invadiu suas narinas. Levantou, colocando o próprio capuz por sobre a cabeça. Os policiais aproveitavam a breve hesitação perante a fatalidade para imobilizar alguns dos manifestantes. Imbuído de uma nova coragem e uma ira mais extensa que toda a Avenida onde guerreavam, agarrou o cassetete no chão e investiu, aos gritos, contra os soldados.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ser alguém

Miguel pagava meia entrada no trem, no ônibus, no metrô e até no cinema... mas não sobrava muito tempo, ou dinheiro, para ir ao cinema. Ele trabalhava numa pet shop, dando banho e tosando cães de segunda a sábado, mas à noite estudava Direito – o que demandava quase todo o seu curto salário, e praticamente todo o pique.

Auxiliar de limpeza no shopping, dona Marta, a mãe de Miguel, teve três filhas depois dele, duas gêmeas três anos mais novas e a caçula dois anos depois das gêmeas. O pai, Sr. León, italiano, era dono de um velho e empoeirado boteco, frequentado basicamente por aposentados, onde as meninas eram proibidas de entrar, assim sobrava para Miguel ajudar o pai nos fins de semana.

O sono de Miguel era parco e picado, dividido entre sua cama e as sete conduções que pegava todos os dias. Às vezes dormia mesmo em pé no trem, mas essa “mordomia” acabava quando começavam as temporadas de provas. Comia mal, a não ser quando sobrava janta para a marmita do almoço, nestes dias devorava a refeição com gosto, mas em geral se resignava a um pão de queijo ou uma coxinha. Depois só ia comer de novo quando chegava em casa, tarde da noite. De vez em quando, nos dias seguintes ao pagamento do salário, comia algo na faculdade, pão de queijo se tivesse comido coxinha no almoço e vice-versa.

Não tinha namorada. Ficava com uma ou outra garota na faculdade, nas poucas escapadelas que dava até o bar vizinho e por alguns meses flertou com uma menina que estudava teatro e sempre levava seu casal de shitsus à pet shop, mas não deu muito certo quando saíram juntos e a loja ainda acabou perdendo a cliente.

Suas maiores fontes de diversão eram o videogame, já ultrapassado, mas com uma vasta gama de baratos jogos piratas à sua disposição, e o futebol aos domingos de manhã com os amigos do bairro. Nesses dias, vira e mexe sentia inveja daqueles que não faziam faculdade e apenas trabalhavam, que sem ter de pagar anos e anos de estudos caros, compravam roupas, alguns até carros, e saíam com garotas nas noites de sexta e sábado.

No finalzinho do terceiro ano arranjou um estágio, e então teve de comprar algumas camisas, calças, gravatas, meias, sapatos e até um paletó. As roupas não caíam lá muito bem, porque ele era alto, com um metro e oitenta, e também um pouco gordo, mas eram tudo o que podia pagar. Começou a pegar muito mais conduções todos os dias, visitando fóruns, cartórios e prefeituras pela cidade de São Paulo e as muitas outras que a cercavam, e continuava dando banho em cachorros aos sábados porque o estágio pagava muito mal.

Ainda assim adorava seu novo emprego, adorava analisar processos, aprender as estratégias dos advogados mais experientes. Ficava sonhando com o dia em que ele mesmo faria parte disso, tirando dinheiro de empresas que supostamente exploravam funcionários e eventualmente até livrando alguém de ir para a cadeia. Seus pais não gostavam quando ele contava os casos de criminosos que estudava, mas não conseguia resistir. Nada era tão emocionante como o Direito Criminal. A cereja do bolo eram os olhares femininos, que aumentaram consideravelmente quando ele começou a andar de terno e gravata.

Com muita dedicação terminou a faculdade, nos cinco anos esperados, sem carrear dependências, passando por uma meia dúzia de exames finais. Foi efetivado no escritório no final do quinto ano, antes mesmo de passar no exame da Ordem, e elogiado pelo chefão na frente de todo mundo, quando anunciaram sua promoção bem alto, para que todos no andar ouvissem. Naquele dia matou aula e foi tomar uma cerveja com os colegas, já que era sexta-feira, e lá encontraram um grupo de estudantes de pedagogia de uma faculdade próxima. Miguel conheceu Amanda. A meiga, tímida e linda Amanda, com quem começou a namorar.

A primeira fase da prova da OAB foi difícil, mas ele passou, logo no começo do ano, e em abril já fazia um curso preparatório para a segunda fase. Numa quarta-feira, não foi à aula, saiu mais cedo do trabalho e foi para casa tomar banho e se arrumar e pouco depois juntou os pais, as irmãs e a namorada para sua colação de grau, o tão sonhado momento em que pegaria seu diploma. As gêmeas, que já tinham vinte anos, estavam lindas em seus vestidos (que não eram iguais). Miguel deixou a família nas cadeiras para a plateia, deu um beijo de leve na namorada, para não lhe borrar o batom, e foi ao encontro dos colegas de sala.

Na fila, seus colegas trocavam histórias, contando o que lhes tinha acontecido nestes últimos meses depois da faculdade e relembrando casos engraçados dos cinco anos que passaram juntos. Estavam todos muito animados, tirando fotos com seus celulares para o Facebook e o Instagram, mas guardaram os aparelhos quando atravessaram o salão e se sentaram nas cadeiras do grande palco, sob uma salva de palmas. Dona Marta tinha os olhos marejados e Amanda não conseguia parar de sorrir. O Sr. León gritava e agitava os braços, feliz como nunca pelo primeiro de seus filhos que se formava na universidade.

A oradora da turma era aquela menina mais popular da sala, amiga de todas as panelinhas, e não á toa, seu carisma no discurso levou muitos às lágrimas, tanto entre os formandos quanto no público. E depois o rapaz que tinha as melhores notas foi até a frente do palco e leu o juramento, que os outros ecoaram em uníssono, até que finalmente chegou o momento da entrega dos diplomas e foram, exultantes, formar fila na borda do palco. Miguel tinha um sorriso larguíssimo no rosto. Finalmente iria receber seu diploma, logo mais passaria na OAB e estava apaixonado pela doce e atenciosa Amanda, que o olhava orgulhosa ao lado da irmã caçula. Miguel conseguira guardar algum dinheiro durante aqueles longos anos de muito trabalho e estudo, quase sem sair de casa, e talvez, com mais dois ou três anos, teria o suficiente para abrir seu próprio escritório. Seu coração batia rápido de ansiedade com toda a expectativa da vida de sucesso que teria pela frente.


Quando o locutor chamou seu nome, deu o primeiro passo em direção ao professor que segurava o canudo simbólico e depois não ouviu mais nada. Seu coração parou e Miguel caiu sobre os joelhos, para despencar do palco logo em seguida, enquanto o fotógrafo disparava flashes em sua direção. Estava morto.