segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ser alguém

Miguel pagava meia entrada no trem, no ônibus, no metrô e até no cinema... mas não sobrava muito tempo, ou dinheiro, para ir ao cinema. Ele trabalhava numa pet shop, dando banho e tosando cães de segunda a sábado, mas à noite estudava Direito – o que demandava quase todo o seu curto salário, e praticamente todo o pique.

Auxiliar de limpeza no shopping, dona Marta, a mãe de Miguel, teve três filhas depois dele, duas gêmeas três anos mais novas e a caçula dois anos depois das gêmeas. O pai, Sr. León, italiano, era dono de um velho e empoeirado boteco, frequentado basicamente por aposentados, onde as meninas eram proibidas de entrar, assim sobrava para Miguel ajudar o pai nos fins de semana.

O sono de Miguel era parco e picado, dividido entre sua cama e as sete conduções que pegava todos os dias. Às vezes dormia mesmo em pé no trem, mas essa “mordomia” acabava quando começavam as temporadas de provas. Comia mal, a não ser quando sobrava janta para a marmita do almoço, nestes dias devorava a refeição com gosto, mas em geral se resignava a um pão de queijo ou uma coxinha. Depois só ia comer de novo quando chegava em casa, tarde da noite. De vez em quando, nos dias seguintes ao pagamento do salário, comia algo na faculdade, pão de queijo se tivesse comido coxinha no almoço e vice-versa.

Não tinha namorada. Ficava com uma ou outra garota na faculdade, nas poucas escapadelas que dava até o bar vizinho e por alguns meses flertou com uma menina que estudava teatro e sempre levava seu casal de shitsus à pet shop, mas não deu muito certo quando saíram juntos e a loja ainda acabou perdendo a cliente.

Suas maiores fontes de diversão eram o videogame, já ultrapassado, mas com uma vasta gama de baratos jogos piratas à sua disposição, e o futebol aos domingos de manhã com os amigos do bairro. Nesses dias, vira e mexe sentia inveja daqueles que não faziam faculdade e apenas trabalhavam, que sem ter de pagar anos e anos de estudos caros, compravam roupas, alguns até carros, e saíam com garotas nas noites de sexta e sábado.

No finalzinho do terceiro ano arranjou um estágio, e então teve de comprar algumas camisas, calças, gravatas, meias, sapatos e até um paletó. As roupas não caíam lá muito bem, porque ele era alto, com um metro e oitenta, e também um pouco gordo, mas eram tudo o que podia pagar. Começou a pegar muito mais conduções todos os dias, visitando fóruns, cartórios e prefeituras pela cidade de São Paulo e as muitas outras que a cercavam, e continuava dando banho em cachorros aos sábados porque o estágio pagava muito mal.

Ainda assim adorava seu novo emprego, adorava analisar processos, aprender as estratégias dos advogados mais experientes. Ficava sonhando com o dia em que ele mesmo faria parte disso, tirando dinheiro de empresas que supostamente exploravam funcionários e eventualmente até livrando alguém de ir para a cadeia. Seus pais não gostavam quando ele contava os casos de criminosos que estudava, mas não conseguia resistir. Nada era tão emocionante como o Direito Criminal. A cereja do bolo eram os olhares femininos, que aumentaram consideravelmente quando ele começou a andar de terno e gravata.

Com muita dedicação terminou a faculdade, nos cinco anos esperados, sem carrear dependências, passando por uma meia dúzia de exames finais. Foi efetivado no escritório no final do quinto ano, antes mesmo de passar no exame da Ordem, e elogiado pelo chefão na frente de todo mundo, quando anunciaram sua promoção bem alto, para que todos no andar ouvissem. Naquele dia matou aula e foi tomar uma cerveja com os colegas, já que era sexta-feira, e lá encontraram um grupo de estudantes de pedagogia de uma faculdade próxima. Miguel conheceu Amanda. A meiga, tímida e linda Amanda, com quem começou a namorar.

A primeira fase da prova da OAB foi difícil, mas ele passou, logo no começo do ano, e em abril já fazia um curso preparatório para a segunda fase. Numa quarta-feira, não foi à aula, saiu mais cedo do trabalho e foi para casa tomar banho e se arrumar e pouco depois juntou os pais, as irmãs e a namorada para sua colação de grau, o tão sonhado momento em que pegaria seu diploma. As gêmeas, que já tinham vinte anos, estavam lindas em seus vestidos (que não eram iguais). Miguel deixou a família nas cadeiras para a plateia, deu um beijo de leve na namorada, para não lhe borrar o batom, e foi ao encontro dos colegas de sala.

Na fila, seus colegas trocavam histórias, contando o que lhes tinha acontecido nestes últimos meses depois da faculdade e relembrando casos engraçados dos cinco anos que passaram juntos. Estavam todos muito animados, tirando fotos com seus celulares para o Facebook e o Instagram, mas guardaram os aparelhos quando atravessaram o salão e se sentaram nas cadeiras do grande palco, sob uma salva de palmas. Dona Marta tinha os olhos marejados e Amanda não conseguia parar de sorrir. O Sr. León gritava e agitava os braços, feliz como nunca pelo primeiro de seus filhos que se formava na universidade.

A oradora da turma era aquela menina mais popular da sala, amiga de todas as panelinhas, e não á toa, seu carisma no discurso levou muitos às lágrimas, tanto entre os formandos quanto no público. E depois o rapaz que tinha as melhores notas foi até a frente do palco e leu o juramento, que os outros ecoaram em uníssono, até que finalmente chegou o momento da entrega dos diplomas e foram, exultantes, formar fila na borda do palco. Miguel tinha um sorriso larguíssimo no rosto. Finalmente iria receber seu diploma, logo mais passaria na OAB e estava apaixonado pela doce e atenciosa Amanda, que o olhava orgulhosa ao lado da irmã caçula. Miguel conseguira guardar algum dinheiro durante aqueles longos anos de muito trabalho e estudo, quase sem sair de casa, e talvez, com mais dois ou três anos, teria o suficiente para abrir seu próprio escritório. Seu coração batia rápido de ansiedade com toda a expectativa da vida de sucesso que teria pela frente.


Quando o locutor chamou seu nome, deu o primeiro passo em direção ao professor que segurava o canudo simbólico e depois não ouviu mais nada. Seu coração parou e Miguel caiu sobre os joelhos, para despencar do palco logo em seguida, enquanto o fotógrafo disparava flashes em sua direção. Estava morto.

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