Alexandre era escritor. Se é que dá pra chamar de escritor alguém que nunca teve nada publicado, nem um soneto sequer. Mas ainda assim gostava de escrever, e tentava melhorar. Tinha um livro em andamento já há mais de dois anos, e nunca terminava. Reescrevia, acrescentava uma ideia, uma descrição, um detalhe, mas acabar que é bom, nada.
Frequentava uma oficina literária, num desses
CEU’s de São Paulo. Se encontrava uma vez por semana com uma professora com
menos de trinta anos e um bando de adolescentes. Aos vinte e dois, ele era
disparado o mais velho da turma. A maioria ali só queria fazer poeminhas
imbecis ou dissertações de vestibular, mas até que as conversas com a tal
professora, formada em letras, eram agradáveis e proveitosas.
Ela se chamava Pietra. Era apaixonada por livros,
filmes, seriados, música, tudo isso que uma parcela específica da população
consome aos quilos. A jovem professora, que odiava ter que seguir ensinos
apostilados e programas rígidos, vivia inventando exercícios para que seus
alunos pudessem liberar a criatividade.
Naquele sábado o exercício era simples: cada
um escrevia num papel um cantor ou banda e uma música, depois os papéis seriam
dobrados e misturados num saco, cada aluno pegaria um e escreveria algo
inspirado naquela canção. Alexandre achava que isso era inútil e desmotivador,
mas participou assim mesmo.
A sala de assoalho de madeira, com luz do Sol
entrando pelas grandes janelas, foi subitamente tomada pelo som de uma dúzia de
pessoas desdobrando papéis. Papéis já pequenos dobrados três ou quatro vezes,
depois de alguns segundos o flaf-flaf
cessou e, animado, Alexandre deixou os olhos absorverem as cinco palavras grafadas
com tinta vermelha no bilhetinho marcado por dobras: “Light my fire, the Doors”.
Leu de novo, e de novo. “Sério?” pensou.
Detestava The Doors, de quem só conhecia uma música, a mesma cujo nome estava
em sua frente. “Justo essa música?”, tentava manter uma expressão inócua, onde
ninguém pudesse reconhecer seu descontentamento, mas por dentro estava
desesperado.
O texto deveria ser entregue na semana que
vem, no final da aula foi falar com a professora. Ela era jovem demais para ser
chamada de “professora”, então chamou seu nome e perguntou se sobrara algum
papel no saco para trocar. Pietra perguntou qual ele tinha tirado, imaginando
que alguns dos adolescentes de periferia teria escrito algum funk ou algo do gênero,
e ele lhe mostrou o rabisco.
“Ah, fui eu que sugeri essa música...” deixou
escapar, inexperiente, e o a cara do rapaz se arregalou inteira. Pairou um
silêncio constrangedor por alguns instantes, até que ela estendeu a mão para
ele, “...mas pode fazer outra que quiser...”.
Alexandre puxou a mão rápido, recolhendo o
papel, “ah... eu tento essa mesmo, só porque é sua há-há”, sorriu
desconcertado, tentando disfarçar. Pietra levou a mão esticada até a nuca, e
coçou a cabeça, sem saber o que fazer, “tá bom, então... até semana que vem”,
abriu um sorriso amarelo e ele foi embora.
Em casa, no domingo, Alexandre sentou à mesa
da cozinha com um monte de folhas em branco para escrever. Pensou na música, “Light
my Fire”, ouvira-a apenas uma vez em toda a vida. Os pais dele não gostavam de
rock n, roll, então tudo o que conhecia descobrira sozinho, pesquisando nomes e
músicas de bandas que para ele eram novas. Numa dessas fez um download de um “the
Best of The Doors”, a primeira música era justamente essa e odiou, parou a
música, fechou o player e deletou o CD para nunca mais querer ouvi-lo.
Pegou a letra da música, leu algumas vezes,
escreveu alguns rascunhos, mas no fim chegou à conclusão de que estava tudo uma
porcaria. Abriu o e-mail e mandou uma mensagem para a professora, pedindo não
para trocar de música, mas que ela lhe falasse porque escolhera essa banda e
essa canção, assim ele teria um ponto de partida.
A resposta dela veio dois dias depois, o que
era muito tarde para os padrões da internet. No e-mail ela contou como ouvira
muito The Doors na adolescência, deixando que suas canções a ajudassem a dar
vazão a sentimentos complicados, que de outra forma poderiam ser
autodestrutivos. Pietra deu a ele uma dica: “leia um pouco sobre a história de
Jim Morrison, isso pode ajudar”.
E foi isso que ele fez. Baixou CD’s, até um
esquisito que não tinha música, só Jim Morrison lendo poesias. Leu sobre a
banda, sobre os membros, sua carreira curta, porém astronômica, cujo sucesso
perdura até hoje, décadas depois da morte de seu líder.
Depois de algum tempo, chegou à conclusão de
que ele mesmo era um pouco como Jim Morrison, com tantas ideias, tantas
vontades, e sem saber direito como se expressar, tentando de várias formas, até
que as drogas o dominassem. Ou quase, porque sentia que mesmo mergulhado em
vícios uma parte do Rei Lagarto ainda era livre e criativa.
Conheceu outras músicas, “LA Woman”, “Touch Me”, “Riders on the Storm”,
muitas delas. Até
“Light my Fire” ganhou novos sentidos à luz da história de vida de Jim
Morrison, apesar de ele ainda achar que faltava intensidade, faltava entrega
pessoal do cantor naquela faixa.
Os dias passaram e chegou o dia de entregar
os textos inspirados em músicas, mas Pietra não viu Alexandre na sala naquele
sábado, nem no seguinte e nem no outro. Preocupada, resolveu passar na casa
dele após a terceira ausência, até porque não era longe do CEU mesmo. Foi
recebida pelos pais do rapaz e levada ao quarto dele, apesar de um barulho alto
sair lá de dentro.
Quando a porta se abriu, deu de cara com
Alexandre, sem camisa, sentado na cama com uma guitarra no colo, tirando urros
desconexos de suas cordas, que lembravam vagamente acordes. Quando percebeu a
visita de Pietra, ele se levantou e deixou a guitarra na cama. Na escrivaninha
da outra parede o laptop estava fechado e o cesto de lixo transbordava de
bolinhas de papel. Ela olhava para ele incrédula, mas ao mesmo tempo fascinada
e curiosa, perguntou porque ele não ia mais às aulas.
“Parei de tentar escrever, vou tentar viver.”
Texto: Pedro Dias
Arte: Paulo Silva
Texto: Pedro Dias
Arte: Paulo Silva
Esse foi o melhor texto que li seu. Sou suspeita pra comentar algo que seja sobre o Jim. Mas esse foi no incrível é realmente assim que ele era. Parabéns sempre fui fã das suas histórias mas nessa vc se superou! Bjos
ResponderExcluirUow!!! Dos que li, esse me surpreendeu além do que já estava me acostumando. Sua escrita é corrida, não nos deixa tempo de respirar... Começamos a ler e quando pensamos em encher os pulmões e dar aquele ofego... Você fecha com maestria! Parabéns mais uma vez! Encantada com seu trabalho...
ResponderExcluirBjão!
Lu. Franzin