terça-feira, 22 de outubro de 2013

Menina da Cidade


A menina da cidade precisa estudar, tem que arranjar emprego, vai fazer ENEM e vestibular. Um rosto de marfim não transparece, e os passos de passarela não esmorecem fácil, mas tudo isso pesa sobre os ombros, ainda que ela mantenha os olhos no horizonte.


Mas no Piauí é diferente. Tudo é família, festa e forró. Anda de moto e deita na estrada, vai buscar água. Vê o Sol nascer. Vê o Sol se pôr. Coisas que não dá pra ver direito com esse monte de prédios de São Paulo. A Lua é maior, o firmamento é mais brilhante. Longe da cidade, tudo cheira à vida.


Com os pés submersos na bacia, nua, ela se banha no início da noite. À céu aberto, com apenas as estrelas por testemunhas de sua beleza revelada. Deslizando as mãos ensaboadas pelo próprio corpo, ela encara as estrelas de volta e pensa que não haveria tanta violência, tanto estresse e tantos problemas no mundo se mais pessoas vissem o que ela vê nesse momento.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Black Bloc



*Esta é uma obra de ficção, quaisquer semelhanças com pessoas, entidades, locais e eventos reais são mera coincidência, bitch*

Beatriz assistia assustada, ainda com dez anos de idade, enquanto sua mãe a puxava pela mão e se afastavam pela calçada da Avenida Paulista. De repente ouviu o cras característico de vidro sendo estilhaçado. A loja do McDonalds onde há pouco estivera comendo com a mãe estava sendo destruída à marretadas por um grupo de pessoas vestidas de preto, com capuzes e lenços no rosto. Era vinte de abril de dois mil e um, e os adeptos do Black Bloc faziam sua primeira aparição pública no Brasil, protestando, a seu modo agressivo, chocante e profundamente simbólico contra a aprovação da Área de Livre Comércio das Américas, uma política internacional amplamente criticada. Os manifestantes não machucaram ou sequer ameaçaram os clientes do restaurante, apenas destruíram sua fachada.

Outras fachadas de grandes lojas franquiadas multinacionais, e também agências bancárias, foram quebradas naquele dia, e Beatriz assistiu a boa parte das ações, enquanto a mãe tentava mantê-las longe da bagunça e em segurança até chegarem ao Metrô. Aquelas cenas jamais saíram da cabeça da menina, que desde pequena era acusada pelos pais e familiares por “pensar demais” e “nunca ficar feliz com nada”. Principalmente uma das figuras de preto, que brandia vigorosamente a pesada marreta de cabo longo contra a vidraça do McDonald’s. Apesar do rosto coberto, as curvas sob as roupas pretas e o tom característico de sua voz a bradar evidenciavam uma mulher. Para Beatriz, aquela era uma mulher que homem nenhum ousaria tentar intimidar ou agredir, e ela queria ser assim quando crescesse.

Com o tempo, descobriu o que era ser um Black Bloc e a ideologia anarquista e atuante da tática de protesto lhe caiu como uma luva. Até tentara sair como Black Bloc em pequenos protestos às vezes, mas normalmente acabava sozinha, e a força desta estratégia única de manifestação está justamente no coletivo, na massa de pessoas não identificáveis que ousavam pôr-se, com a cara coberta e a coragem evidente, entre os manifestantes comuns, pacíficos e a polícia repressora.

Mas em junho de dois mil e treze, prefeitos de várias cidades do Brasil optaram por aprovar um controverso aumento no valor das passagens de ônibus, trens e metrôs. Logo depois disso, nas grandes cidades, começaram algumas passeatas e ocupações de vias públicas em protesto contra os novos preços. O número de manifestações foi aumentando, e também a quantidade de cidades atingidas. Logo não eram mais apenas pequenos grupos, mas enormes multidões, e os vinte centavos acrescidos nas passagens eram só a gota d’água para toda uma miríade de insatisfações dos brasileiros contra sua administração pública. Algumas vezes, na Avenida Paulista, os protestos chegaram a contar com centenas de milhares de pessoas.

E no meio deles estavam os Black Blocs, que, vez ou outra, chegavam a ser cem ou duzentos. Parece pouco, mas uma vanguarda de cem ou duzentas pessoas de preto, encarando as tropas de choque das polícias pelo país inteiro conseguiam motivar outros participantes e até combater efetivamente a polícia, para minimizar os danos causados por ela nos manifestantes “civis”. No dia dez de junho, aconteceu um dos primeiros grandes protestos na Avenida Paulista, que foi fortemente reprimido pelo choque. Até na Alameda Santos, quem estava dentro da Livraria Cultura do Conjunto Nacional podia ver pelas grandes vidraças uma falange de policiais bem equipados investindo em linha contra os manifestantes. Lá no meio, de moletom preto, mochila nas costas, capuz e um lenço encharcado de vinagre sobre o nariz e a boca, Beatriz atingia o escudo de um policial com um pedaço de corrimão, tirado de uma das escadarias das estações de Metrô próximas, enquanto outros companheiros Black Blocs pichavam paredes, quebravam vidros e arremessavam pedras.

Da calçada, tentando encontrar esconderijos de onde pudesse sair ileso e ao mesmo tempo tirar algumas boas fotos, e talvez conseguir uma narrativa descente do que estava acontecendo, Tiago, um jornalista, viu quando Beatriz, já desvencilhada daquele policial, chutou de volta, gritando, uma bomba de gás lacrimogêneo que outro militar havia atirado. Parou no meio do movimento de agachar-se atrás de uma grande lixeira de concreto, encantado pela visão que teve de Beatriz. Ela era baixa, um metro e sessenta talvez, tinha seios pequenos que não faziam tanto volume no moletom preto, era um pouco gordinha e dona de um largo e bonito quadril, no topo de coxas e pernas bem delineadas. Brandia um cilindro de metal com a ponta quebrada que ele não sabia de onde era, e algumas mechas de cabelo ruivo escapavam do capuz e do lenço. Tiago só voltou à realidade quando uma bala de borracha jogou-o no chão ao acertar seu ombro quase que de raspão. Praguejando, ficou atrás da lixeira e tentou tirar uma foto de sua nova musa de preto, mas ela já havia corrido para longe.

No dia seguinte, quando chegou à redação, tentou escrever sobre o que tinha visto na noite anterior, mas nada lhe vinha à cabeça – a não ser Beatriz. Nem sabia o nome dela, mas sabia que jamais uma mulher havia o impressionado tanto, era muita fúria, muita coragem, muita ferocidade, algo que quase não condizia com as generosas curvas de seu corpo feminino. Imaginava-se lutando lado a lado com aquela mulher, como Will e Elizabeth em Piratas do Caribe. Sem conseguir resistir por mais tempo, escreveu uma curta matéria sobre a guerreira de preto, colocando no meio do texto algumas outras informações e reflexões sobre o momento que viviam. É claro que seu editor detestou o texto. Depois de um ano de estágio, após um concorridíssimo processo seletivo, Tiago finalmente fora efetivado na equipe da revista Veja, um sonho que alimentava há muito tempo.

Porém, agora esse sonho não parecia significar mais nada. Depois do fim de semana abandonou a Editora Abril e passou a se dedicar a cobrir, independentemente, a onda de protestos que acontecia em São Paulo, sua ideia era manter um tipo de “blog dos protestos”, e talvez escrever um livro-reportagem quando tudo acabasse. Mas no fim das contas isso era só uma desculpa para ir atrás de Beatriz, que ele passou a procurar em todos os protestos, fotografar e registrar as ações para contar em seus textos depois. Tiago se tornara obcecado por ela, mas não tinha coragem de ir falar diretamente com sua paixão platônica.

Depois que a maioria das prefeituras revogou o aumento das passagens o contingente dos protestos diminuiu consideravelmente, mas ainda assim muitos iam para as ruas, incluindo Beatriz e os Black Blocs. Sem liderança oficial, com as datas e locais de suas ações combinados e divulgados na internet, os homens e mulheres de preto mantinham sua resistência, seja em interdições na Avenida Paulista ou acampamentos no Congresso Nacional e em frente à residência do Governador do Rio de Janeiro. Os Black Blocs continuaram atuando, arautos da anarquia e da insatisfação pública. Rotulados como “vândalos violentos” pela mídia, e toda sorte de adjetivos depreciativos como “arruaceiros”, “baderneiros” e alguns até foram presos por formação de quadrilha armada – um crime inafiançável.

Quase três meses depois de os protestos começarem, chegou o Dia da Independência, sete de setembro, e desde cedo os Black Blocs, entre outros manifestantes, já se concentravam no vão livre do MASP. Claro que Beatriz estava lá, ela adorava a ação das manifestações, sentia-se viva e livre, lutando, com as próprias mãos, por um país melhor. Tiago continuava seguindo a garota, ainda tirando fotos, sem saber o que fazer para falar com ela. Como um homem normal e medroso como ele poderia tomar a iniciativa de puxar conversa com uma mulher tão forte e imponente? Mas ainda assim não conseguia se afastar dela, era atraído por seus olhos castanhos de caçadora, com sobrancelhas crispadas, pelo fogo de seus cabelos, como se o próprio ardor de seus ideais escapasse de sua mente.

No sete de setembro, as manifestações já eram esperadas, e as autoridades mandaram duzentos e cinquenta policiais militares para a Avenida Paulista. Isso não intimidou os Black Blocs, de maneira alguma, e assim que a polícia tentou conter o avanço dos manifestantes pela Avenida, lá estavam os anarquistas de preto, novamente à frente de todos, com armas e projéteis improvisados, confrontando os escudos de ferro, cassetetes e balas de borracha. Após o primeiro choque, Tiago se esforçou para manter a mira de sua câmera em Beatriz, mesmo quando as fileiras de negro se quebraram contra as da polícia. E assim permanecia em seus cantos semiprotegidos, acompanhando a história enquanto era feita, pelas belas mãos e pernas de uma mulher.

Mas desta vez haviam muitos policiais. Pelo menos um para cada Black Bloc, e logo os anarquistas estavam perdendo, tendo de fugir e constantemente se reagrupar uns aos outro para não serem completamente subjugados. Beatriz foi atingida por um cassetete e teve de se apoiar em um joelho para não cair, mas quando o policia que a acertara investiu novamente ela o surpreendeu com um soco no rosto, o policial caiu no asfalto ,cassetete e capacete se soltaram e rolaram pela avenida. Para reagir depressa, antes que Beatriz lhe atingisse de novo, sacou do da cintura um revólver que deveria estar carregado com balas de borracha como os de seus companheiros, mas quando o tiro atingiu a Black Bloc no peito, ela não caiu para trás como o repórter caíra na noite em que a viu pela primeira vez. A bala entrou em seu peito, e um filete de sangue escapou por sobre o moletom enquanto ela desmontava sobre os joelhos, e por fim caía de bruços no chão. Enquanto o policial, ainda em frenesi, mantinha o revólver apontado para o nada.

Tiago assistiu a tudo, incrédulo. Quando viu o homem atirar não se conteve mais, gritou e saiu correndo por entre a batalha que ainda se desenrolava. Segurando a pesada câmera pela correia de segurança, atingiu com ela a cabeça do policial assassino, e ele caiu a seu lado quando a câmera se estraçalhou no impacto. Depressa, se atirou por sobre Beatriz e virou-a de barriga para cima, seus olhos castanhos estavam abertos e vazios, com um deles inchado devido ao golpe, uma poça de sangue já se formava embaixo de seu corpo e algumas pessoas, de ambos os lados, já paravam as agressões ao perceber que a menina estava morta.


Chorando, Tiago tirou o lenço do rosto dela, e pela primeira vez viu seu nariz e sua boca, que estava suja de sangue. Seu nariz era fino e delicado, condizente com a boca pequena e cor-de-rosa, com uma pinta sobre o lábio superior, do lado esquerdo. Ele a abraçou, tentando ouvir ou sentir respiração, mas não havia mais vida nela. Delicadamente, fechou suas pálpebras e afagou seu rosto inchado. Sentindo um imenso remorso e arrependimento por não ter sequer tentado conhecê-la quando podia, segurou o lenço dela com as duas mãos, dobrando o na diagonal, depois cobriu com ele o próprio rosto e tossiu quando o cheiro do vinagre invadiu suas narinas. Levantou, colocando o próprio capuz por sobre a cabeça. Os policiais aproveitavam a breve hesitação perante a fatalidade para imobilizar alguns dos manifestantes. Imbuído de uma nova coragem e uma ira mais extensa que toda a Avenida onde guerreavam, agarrou o cassetete no chão e investiu, aos gritos, contra os soldados.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ser alguém

Miguel pagava meia entrada no trem, no ônibus, no metrô e até no cinema... mas não sobrava muito tempo, ou dinheiro, para ir ao cinema. Ele trabalhava numa pet shop, dando banho e tosando cães de segunda a sábado, mas à noite estudava Direito – o que demandava quase todo o seu curto salário, e praticamente todo o pique.

Auxiliar de limpeza no shopping, dona Marta, a mãe de Miguel, teve três filhas depois dele, duas gêmeas três anos mais novas e a caçula dois anos depois das gêmeas. O pai, Sr. León, italiano, era dono de um velho e empoeirado boteco, frequentado basicamente por aposentados, onde as meninas eram proibidas de entrar, assim sobrava para Miguel ajudar o pai nos fins de semana.

O sono de Miguel era parco e picado, dividido entre sua cama e as sete conduções que pegava todos os dias. Às vezes dormia mesmo em pé no trem, mas essa “mordomia” acabava quando começavam as temporadas de provas. Comia mal, a não ser quando sobrava janta para a marmita do almoço, nestes dias devorava a refeição com gosto, mas em geral se resignava a um pão de queijo ou uma coxinha. Depois só ia comer de novo quando chegava em casa, tarde da noite. De vez em quando, nos dias seguintes ao pagamento do salário, comia algo na faculdade, pão de queijo se tivesse comido coxinha no almoço e vice-versa.

Não tinha namorada. Ficava com uma ou outra garota na faculdade, nas poucas escapadelas que dava até o bar vizinho e por alguns meses flertou com uma menina que estudava teatro e sempre levava seu casal de shitsus à pet shop, mas não deu muito certo quando saíram juntos e a loja ainda acabou perdendo a cliente.

Suas maiores fontes de diversão eram o videogame, já ultrapassado, mas com uma vasta gama de baratos jogos piratas à sua disposição, e o futebol aos domingos de manhã com os amigos do bairro. Nesses dias, vira e mexe sentia inveja daqueles que não faziam faculdade e apenas trabalhavam, que sem ter de pagar anos e anos de estudos caros, compravam roupas, alguns até carros, e saíam com garotas nas noites de sexta e sábado.

No finalzinho do terceiro ano arranjou um estágio, e então teve de comprar algumas camisas, calças, gravatas, meias, sapatos e até um paletó. As roupas não caíam lá muito bem, porque ele era alto, com um metro e oitenta, e também um pouco gordo, mas eram tudo o que podia pagar. Começou a pegar muito mais conduções todos os dias, visitando fóruns, cartórios e prefeituras pela cidade de São Paulo e as muitas outras que a cercavam, e continuava dando banho em cachorros aos sábados porque o estágio pagava muito mal.

Ainda assim adorava seu novo emprego, adorava analisar processos, aprender as estratégias dos advogados mais experientes. Ficava sonhando com o dia em que ele mesmo faria parte disso, tirando dinheiro de empresas que supostamente exploravam funcionários e eventualmente até livrando alguém de ir para a cadeia. Seus pais não gostavam quando ele contava os casos de criminosos que estudava, mas não conseguia resistir. Nada era tão emocionante como o Direito Criminal. A cereja do bolo eram os olhares femininos, que aumentaram consideravelmente quando ele começou a andar de terno e gravata.

Com muita dedicação terminou a faculdade, nos cinco anos esperados, sem carrear dependências, passando por uma meia dúzia de exames finais. Foi efetivado no escritório no final do quinto ano, antes mesmo de passar no exame da Ordem, e elogiado pelo chefão na frente de todo mundo, quando anunciaram sua promoção bem alto, para que todos no andar ouvissem. Naquele dia matou aula e foi tomar uma cerveja com os colegas, já que era sexta-feira, e lá encontraram um grupo de estudantes de pedagogia de uma faculdade próxima. Miguel conheceu Amanda. A meiga, tímida e linda Amanda, com quem começou a namorar.

A primeira fase da prova da OAB foi difícil, mas ele passou, logo no começo do ano, e em abril já fazia um curso preparatório para a segunda fase. Numa quarta-feira, não foi à aula, saiu mais cedo do trabalho e foi para casa tomar banho e se arrumar e pouco depois juntou os pais, as irmãs e a namorada para sua colação de grau, o tão sonhado momento em que pegaria seu diploma. As gêmeas, que já tinham vinte anos, estavam lindas em seus vestidos (que não eram iguais). Miguel deixou a família nas cadeiras para a plateia, deu um beijo de leve na namorada, para não lhe borrar o batom, e foi ao encontro dos colegas de sala.

Na fila, seus colegas trocavam histórias, contando o que lhes tinha acontecido nestes últimos meses depois da faculdade e relembrando casos engraçados dos cinco anos que passaram juntos. Estavam todos muito animados, tirando fotos com seus celulares para o Facebook e o Instagram, mas guardaram os aparelhos quando atravessaram o salão e se sentaram nas cadeiras do grande palco, sob uma salva de palmas. Dona Marta tinha os olhos marejados e Amanda não conseguia parar de sorrir. O Sr. León gritava e agitava os braços, feliz como nunca pelo primeiro de seus filhos que se formava na universidade.

A oradora da turma era aquela menina mais popular da sala, amiga de todas as panelinhas, e não á toa, seu carisma no discurso levou muitos às lágrimas, tanto entre os formandos quanto no público. E depois o rapaz que tinha as melhores notas foi até a frente do palco e leu o juramento, que os outros ecoaram em uníssono, até que finalmente chegou o momento da entrega dos diplomas e foram, exultantes, formar fila na borda do palco. Miguel tinha um sorriso larguíssimo no rosto. Finalmente iria receber seu diploma, logo mais passaria na OAB e estava apaixonado pela doce e atenciosa Amanda, que o olhava orgulhosa ao lado da irmã caçula. Miguel conseguira guardar algum dinheiro durante aqueles longos anos de muito trabalho e estudo, quase sem sair de casa, e talvez, com mais dois ou três anos, teria o suficiente para abrir seu próprio escritório. Seu coração batia rápido de ansiedade com toda a expectativa da vida de sucesso que teria pela frente.


Quando o locutor chamou seu nome, deu o primeiro passo em direção ao professor que segurava o canudo simbólico e depois não ouviu mais nada. Seu coração parou e Miguel caiu sobre os joelhos, para despencar do palco logo em seguida, enquanto o fotógrafo disparava flashes em sua direção. Estava morto.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Fogo, papel e som



Alexandre era escritor. Se é que dá pra chamar de escritor alguém que nunca teve nada publicado, nem um soneto sequer. Mas ainda assim gostava de escrever, e tentava melhorar. Tinha um livro em andamento já há mais de dois anos, e nunca terminava. Reescrevia, acrescentava uma ideia, uma descrição, um detalhe, mas acabar que é bom, nada.

Frequentava uma oficina literária, num desses CEU’s de São Paulo. Se encontrava uma vez por semana com uma professora com menos de trinta anos e um bando de adolescentes. Aos vinte e dois, ele era disparado o mais velho da turma. A maioria ali só queria fazer poeminhas imbecis ou dissertações de vestibular, mas até que as conversas com a tal professora, formada em letras, eram agradáveis e proveitosas.

Ela se chamava Pietra. Era apaixonada por livros, filmes, seriados, música, tudo isso que uma parcela específica da população consome aos quilos. A jovem professora, que odiava ter que seguir ensinos apostilados e programas rígidos, vivia inventando exercícios para que seus alunos pudessem liberar a criatividade.

Naquele sábado o exercício era simples: cada um escrevia num papel um cantor ou banda e uma música, depois os papéis seriam dobrados e misturados num saco, cada aluno pegaria um e escreveria algo inspirado naquela canção. Alexandre achava que isso era inútil e desmotivador, mas participou assim mesmo.

A sala de assoalho de madeira, com luz do Sol entrando pelas grandes janelas, foi subitamente tomada pelo som de uma dúzia de pessoas desdobrando papéis. Papéis já pequenos dobrados três ou quatro vezes, depois de alguns segundos o flaf-flaf cessou e, animado, Alexandre deixou os olhos absorverem as cinco palavras grafadas com tinta vermelha no bilhetinho marcado por dobras: “Light my fire, the Doors”.

Leu de novo, e de novo. “Sério?” pensou. Detestava The Doors, de quem só conhecia uma música, a mesma cujo nome estava em sua frente. “Justo essa música?”, tentava manter uma expressão inócua, onde ninguém pudesse reconhecer seu descontentamento, mas por dentro estava desesperado.

O texto deveria ser entregue na semana que vem, no final da aula foi falar com a professora. Ela era jovem demais para ser chamada de “professora”, então chamou seu nome e perguntou se sobrara algum papel no saco para trocar. Pietra perguntou qual ele tinha tirado, imaginando que alguns dos adolescentes de periferia teria escrito algum funk ou algo do gênero, e ele lhe mostrou o rabisco.

“Ah, fui eu que sugeri essa música...” deixou escapar, inexperiente, e o a cara do rapaz se arregalou inteira. Pairou um silêncio constrangedor por alguns instantes, até que ela estendeu a mão para ele, “...mas pode fazer outra que quiser...”.

Alexandre puxou a mão rápido, recolhendo o papel, “ah... eu tento essa mesmo, só porque é sua há-há”, sorriu desconcertado, tentando disfarçar. Pietra levou a mão esticada até a nuca, e coçou a cabeça, sem saber o que fazer, “tá bom, então... até semana que vem”, abriu um sorriso amarelo e ele foi embora.

Em casa, no domingo, Alexandre sentou à mesa da cozinha com um monte de folhas em branco para escrever. Pensou na música, “Light my Fire”, ouvira-a apenas uma vez em toda a vida. Os pais dele não gostavam de rock n, roll, então tudo o que conhecia descobrira sozinho, pesquisando nomes e músicas de bandas que para ele eram novas. Numa dessas fez um download de um “the Best of The Doors”, a primeira música era justamente essa e odiou, parou a música, fechou o player e deletou o CD para nunca mais querer ouvi-lo.

Pegou a letra da música, leu algumas vezes, escreveu alguns rascunhos, mas no fim chegou à conclusão de que estava tudo uma porcaria. Abriu o e-mail e mandou uma mensagem para a professora, pedindo não para trocar de música, mas que ela lhe falasse porque escolhera essa banda e essa canção, assim ele teria um ponto de partida.

A resposta dela veio dois dias depois, o que era muito tarde para os padrões da internet. No e-mail ela contou como ouvira muito The Doors na adolescência, deixando que suas canções a ajudassem a dar vazão a sentimentos complicados, que de outra forma poderiam ser autodestrutivos. Pietra deu a ele uma dica: “leia um pouco sobre a história de Jim Morrison, isso pode ajudar”.

E foi isso que ele fez. Baixou CD’s, até um esquisito que não tinha música, só Jim Morrison lendo poesias. Leu sobre a banda, sobre os membros, sua carreira curta, porém astronômica, cujo sucesso perdura até hoje, décadas depois da morte de seu líder.

Depois de algum tempo, chegou à conclusão de que ele mesmo era um pouco como Jim Morrison, com tantas ideias, tantas vontades, e sem saber direito como se expressar, tentando de várias formas, até que as drogas o dominassem. Ou quase, porque sentia que mesmo mergulhado em vícios uma parte do Rei Lagarto ainda era livre e criativa.

Conheceu outras músicas, “LA Woman”, “Touch Me”, “Riders on the Storm”, muitas delas. Até “Light my Fire” ganhou novos sentidos à luz da história de vida de Jim Morrison, apesar de ele ainda achar que faltava intensidade, faltava entrega pessoal do cantor naquela faixa.

Os dias passaram e chegou o dia de entregar os textos inspirados em músicas, mas Pietra não viu Alexandre na sala naquele sábado, nem no seguinte e nem no outro. Preocupada, resolveu passar na casa dele após a terceira ausência, até porque não era longe do CEU mesmo. Foi recebida pelos pais do rapaz e levada ao quarto dele, apesar de um barulho alto sair lá de dentro.

Quando a porta se abriu, deu de cara com Alexandre, sem camisa, sentado na cama com uma guitarra no colo, tirando urros desconexos de suas cordas, que lembravam vagamente acordes. Quando percebeu a visita de Pietra, ele se levantou e deixou a guitarra na cama. Na escrivaninha da outra parede o laptop estava fechado e o cesto de lixo transbordava de bolinhas de papel. Ela olhava para ele incrédula, mas ao mesmo tempo fascinada e curiosa, perguntou porque ele não ia mais às aulas.

“Parei de tentar escrever, vou tentar viver.”

Texto: Pedro Dias
Arte: Paulo Silva

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Renovação

Para mim o Rio de Janeiro era um inferno na Terra, mas eu tinha que ir para lá de qualquer maneira, então botei minha faca na mochila e fui. A primeira coisa que me acertou, quando desci do ônibus foi o calor, um soco de ar quente bem no meio da face. “Começou”, pensei.

Fomos direto para o hotel, um alberguezinho, deixamos nossas coisas lá e fomos almoçar, nosso grupo tinha treze pessoas. Depois do almoço, sentamos em roda na praia e começamos a conversar: essa era a versão carioca de uma reunião de negócios.

O Sol se pôs, nosso grupo de dez jornalistas (sem o chefe, e com duas colegas preferindo ficar no hotel mesmo) foi se divertir. Os nativos nos levaram a um bar comum, um lugar com mesa, cadeiras, cerveja e rock n’ roll, comecei a me sentir mais confortável.

A bebida chegava e as máscaras iam caindo, mergulhamos naquelas profundas reflexões etílicas que só os boêmios entendem. No Rio o bar fecha às três da manhã, mas, como diria Cazuza, “a noite nunca tem fim” – compramos Vodka e fomos beber na praia.

Lá pelas cinco e meia, voltamos para o hotel, alguns cambaleantes de tão bêbados. A galera foi dormir, eu fiquei sozinho, agora éramos só nós, o Rio e eu, e como só passaria um fim de semana lá, de jeito nenhum eu iria dormir.

Andei de madrugada, sozinho, estrangeiro do sopé da favela de Pavão e Pavãozinho até a praia de Copacabana. Nenhuma bala me atingiu, não vieram roubar meu celular, não me apontaram uma arma. Os ônibus que passavam na rua não estavam pegando fogo.

Sentei com Drummond para ver o Sol nascer, e de parto natural, com uma luz maior que qualquer uma que eu já tivesse visto. Com o Sol já vivo, depois de me presentear com o espetáculo de sua ascenção, tirei a roupa, acendi um par de velas na areia e avancei correndo em direção ao mar gelado, onde fiquei por alguns minutos.


Éramos só o Rio e eu, e ele me compreendia.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Declaração

Já fazia anos que ele estava apaixonado. Ela, aquela por quem ele se apaixonara à primeira vista, e tinha medo, na idade em que ainda deveria ter nojo de garotas, e tinha até vergonha de admiti-lo para os amigos, mas gostava dela assim mesmo. Mesmo quando se interessava por outras, jamais a esquecia.

A paixão ia e vinha, às vezes fraca, só um olhar encantado durante a aula, outras mais forte, fazendo-o pensar nela o tempo todo, ou ficar nervoso como nunca quando formaram um par para dançar na festa junina, e até morrer de raiva ao descobrir que ela estava "namorando" um cara mais velho. Mas desta vez estava quase incontrolável.

Ele ficou amigo de uma amiga dela, sondou, tentou descobrir alguma coisa. Pela amiga, mandou bilhetinhos anônimos com letras de música, mas a menina reconheceu o autor dos bilhetes pelo gosto por certas canções.

E agora? Eles tinham só catorze anos, e ele nunca tinha sequer falado com uma garota com intenções românticas. O que fazer? Bom, ela já sabia mesmo, então só tinha duas opções. Ser corajoso e se declarar ou evitá-la e jamais tocar no assunto até o fim de seus dias.

Escolheu ser corajoso.

Arranjou uma caixinha azul, um livro de presente, escreveu poemas numa carta e colocou-a dentro do livro. Depois colocou tudo na caixa com um monte de pétalas de rosa e um sonho de valsa. Era a sua cartada final. Se esse full house não funcionasse, é porque nada funcionaria mesmo.

Ele sabia mais ou menos onde ela morava, foi o bairro e ligou para ela de um orelhão, pedindo o endereço certo. Queria se declarar ao vivo, não por telefone. Teve que andar um pouco até a casa dela, mas enfim chegou.

Tocou a campainha.

Ela veio falar com ele, no portão mesmo. Não sabia o que dizer, então partiu para a ação, entregou logo o presente. Ela abriu, olhou, mexeu, achou a carta, resolveu ler os poemas ali, na hora mesmo. Terminou. Olhou para ele.

Ele esperou.

O que ele esperava conseguir com aquilo? Uma garota que repentinamente se encantasse por causa de um presente bonitinho e um par de poemas e se jogasse em seus braços, perdidamente apaixonada depois de receber uma declaração assim?

É, era isso mesmo que ele esperava.


E seria muito bom se tivesse acontecido. Mas não aconteceu, ela disse que não queria namorar, agradeceu o presente, os poemas, tudo. Perguntou se podia dar um abraço. Eles se abraçaram, e ele voltou para casa chorando.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A Confissão do Vampiro

“Abençoe-me, padre, porque eu pequei.” Assim disse o sanguessuga, enquanto o padre o olhava através da tela de madeira. Eram amigos de longa data e o sacerdote imaginava o quanto os invernos de sua alma imortal eram inúteis diante das fortes emoções tão humanas, como a culpa e o arrependimento.

“Apaixonei-me, padre. Depois de décadas passadas como um afortunado parasita luxurioso, o amor bateu à porta de minha câmara, e dessa vez não era puro como antigamente, oh não. Minha nova amada era moura, ainda muito jovem, nem dezessete primaveras completas, feroz como uma das leoas de sua terra exótica, tinha braços fortes para lutar e pernas para correr, mais velozes do que aqueles andaluzes do grão-duque.” O padre imaginou a mulher descrita por seu fiel: negra, musculosa e valente, ele se lembrava de uma estrangeira assim ter passado por uma cidade próxima, e ido embora com as vidas de três homens ainda pingando da espada, mas isso já fazia anos.

“Ela dizia que em seu povo as mulheres não eram nada. Casaram-na com um velho beberrão e covarde, que eu mesmo teria matado, se ela não o tivesse feito antes de fugir. Abriu a garganta do homem com o osso quebrado da costela de uma gazela. Ah, padre, só de pensar naquela beldade, ensopada no sangue de sua primeira vítima, sinto que acrescento um pecado à minha lista. Depois de matá-lo, armou-se de espada, lança, arco e capa e vagou para o norte. Daquela selva onde vivia até aqui, impossível saber quantas vidas suas mãos tiraram, mas a fizeram guerreira. E isso ela era, guerreira! Quando surpreendi um lorde qualquer e seu séquito de guardas pessoais, ela era um deles.” O Vampiro baixou a cabeça, com os cabelos longos cobrindo seu rosto, ocultando um fino sorriso pontiagudo, que misturava saudade, prazer e frieza.

“Rápido como uma serpente, ataquei o grupo. O nobre foi o primeiro, rasguei sua garganta com as garras e bebi o sangue que se atirou em mim. Esse é o primeiro pecado. Depois, conforme os homens tentavam me golpear, trouxe a morte a eles também. Eram tão ralé que matá-los não pode ser pecado maior que a uma barata ou aranha. Por fim, apenas minha amada restava, encarando-me de espada na mão, uma predadora acuada, quase sem medo no olhar. Apaixonei-me por aquela visão, era a primeira mulher habilidosa com uma espada que eu via em todos os meus anos. Encantado, parei na frente dela e abri os braços, rendi-me completamente àquela maravilhosa selvagem, e ainda a desafiei: ‘Sangra-me, criança, se for capaz.’ Com as duas mãos agarrando a empunhadura, seu urro rasgou a noite e sua lâmina me atravessou. Na minha frente, forçando a lâmina mais e mais fundo, rangendo os dentes. Eu não conseguia mais resistir, sussurrei ‘Valeu a pena.’ Antes de lhe roubar um beijo.” O padre ouvia atentamente, deslumbrado e duvidoso, mas sabia que aquele homem não o procuraria para se confessar pela primeira vez apenas para inventar uma história qualquer no meio da noite.

“Ela se assustou no começo, depois tentou se soltar de meu abraço, mas por fim fechou os olhos e se entregou. Seu corpo pressionava a espada, ainda presa ao meu. Não sei quanto tempo se passou, mas jamais experimentei tão longo e delicioso beijo. Não nos desvencilhamos até estarmos nus e termos consumado nosso novo amor à porta de minha câmara, quando faltou-nos a força de vontade para esperar até estarmos dentro dela.” Neste trecho o padre sentiu uma pontada de inveja a morder-lhe as entranhas. Sua fé era verdadeira e ele se entregava totalmente a ela, mas já perdera as contas de quantas mulheres vinham a ele se confessar e acabavam lhe dando sonhos à noite, quando lhe descreviam as atividades matrimoniais – e até adúlteras.

“Quando a noite chegava ao fim, e o sono do amanhecer já se embrenhava em minha alma, num raro momento de genuína felicidade, deixei-me adormecer ao lado dela, mesmo sabendo que durante o dia ela poderia facilmente por fim à minha existência, mas ainda assim julguei não haver melhor morte possível, senão esta, pelas mãos de uma bela guerreira sulista e um rápido beijo de sua lâmina ou do Sol. Mas não, quando acordei na noite seguinte estava sozinho, e por um par de horas me torturei com a possibilidade de ela ter partido para sempre. Para minha felicidade, ela voltou, apaixonara-se por mim! Pode haver sorte maior nesse mundo? A mulher que ama amá-lo de volta?” Uma longa pausa se fez na história, enquanto o vampiro contemplava, em silêncio, um rosto imaginário. Mesmo sem vê-lo, o padre sabia que semblante seria este, e viu ali uma prova da compaixão de seu deus, que permitia mesmo a um sanguessuga imortal vivenciar o amor humano.

“Por semanas ela viveu comigo, invertendo o dia e a noite, curiosa sobre mim e minhas décadas neste mundo. E eu a amava, amava como jamais amara uma mulher, ou qualquer outro ser, mortal ou imortal. Mas que maldição pode ser o amor, padre. Peguei-me logo pensando na noite vindoura em que eu acordaria e ela teria ido, abandonado-me novamente à minha própria solidão. E essa sombra cresceu dentro de mim, até se transformar em escuro e profundo desespero, até que minhas forças se foram e eu a mordi. Esse foi meu segundo pecado. Se arrependimento pudesse matar os imortais, apenas cinzas restariam neste confessionário agora.” O queixo barbado do padre despencou. O velho amigo falara com ele poucas vezes, mas em todas transparecia tristeza e solidão por seu cruel e infindável destino.

“Depois de transformada, seus olhos se voltaram para mim, transtornados pelo ódio. Ela rugia, avançou contra mim, mas agora não era apenas a leoa mortal de antes, era um dragão, sua força equiparada apenas por sua fúria. Logo ela se desvencilhou de meus braços e fugiu, adentrou a noite mais veloz do que jamais havia sido, com a espada substituída pelas poderosas garras de uma vampira. Revoltei-me, padre, eu dei a ela a vida eterna, a possibilidade de fazer nosso amor durar por séculos sem fim. Amaldiçoei-a! A ela e a seus ancestrais, seus descendentes... foi então que percebi, ela não teria descendentes, senão outros sanguessugas. Eu à condenei à solidão, a mesma solidão que eu sentia, a condenação eterna, sem vida e sem morte.” O vampiro cobriu o rosto com as mãos, se seu corpo ainda fosse vivo certamente estaria chorando.

“Me arrependi como nunca, mil vezes naquela noite, e mais mil na noite seguinte, e mais mil em todas as noites dali em diante! Passava as horas ensaiando súplicas de perdão. Por fim, após noites de profunda tristeza, finalmente tomei coragem e deixei o covil, parti para encontrá-la, mas ela já havia ido para longe, voltado à vida nômade, jamais parando em uma mesma cidade por muito tempo, usando diversos nomes, arrebanhando guerreiros pelo caminho , apenas para matá-los em seguida. Herdara minha predileção por presas fortes, como o dragão que prefere lobos a ovelhas. Ah, maldito desespero, fez-me espantar a mais bela, feroz e digna alma que já me cruzara o longo caminho.” A dor de perder a pessoa amada, por morte, distância ou frieza, era uma velha conhecida para o padre. Muitos já haviam confessado vontades diversas por um amor perdido, normalmente envolvendo uma ou duas possíveis mortes de amantes inconsolavelmente apaixonados ou maridos que lhes haviam roubado as musas.

“Mas eu a encontrei, padre, ah, sim, encontrei, depois de anos de busca incansável descobri seu paradeiro, ou melhor, topei com a trilha de cinzas que um dia haviam pertencido ao corpo perfeito de minha amada, até cruzar o caminho dos malditos caçadores! Sete malditos caçadores! Experientes, acostumados a matar criaturas como eu. Se não fosse por minha... infantilidade! Décadas de maturidade nas costas e de repente uma atitude pueril, impensada, expulsa de minha visão a pessoa que mais amei, e ainda por cima atira-a nas estacas daquela corja de covardes! Pegaram-na enquanto dormia, padre, com o Sol alto no céu. Fincaram-lhe estacas, e quando já estava completamente imobilizada, indefesa, arrastaram-na para fora do covil e deixaram-na arder, até não sobrar mais nada!” O vampiro gritava a plenos pulmões, enchendo a igreja de ecos raivosos reverberando em seus mosaicos de vidro. A ira em sua voz era tamanha que o próprio padre chegou a temer ser o próximo alvo da fúria do imortal. Agarrou-se ao crucifixo do pescoço, implorando aos céus que não o deixassem morrer nas mãos de um antigo amigo.

“Mas eu fui atrás deles, cada um deles! Capturei-os um por um, até que tivesse todos em meu poder, e então amarrei-os a estacas, estacas de madeira como aquelas com que perfuraram o coração de minha guerreira, e depois os incendiei! Foi preciso toda a coragem de meu espírito, mas fiquei para vê-los queimando, não fugi do fogo, e me deliciei com cada uma das sete mortes enquanto choravam por compaixão, apelavam para Deus e para as próprias mães. Deixei-os queimar como eles haviam queimado meu amor. Mas no fim, quando as cinzas já estavam frias, dei-me conta da inutilidade deste meu terceiro pecado, embora seja o único do qual não traga nem uma grama sequer de arrependimento. Minha amada jamais voltaria, eu estava novamente solitário, e ainda por cima roído pelo remorso e pela culpa. Como poderia continuar sozinho depois de perder tão imenso e brutal amor? Agora diga-me, padre, que penitência fará com que Deus se compadeça de minha alma presa no eterno tormento duas vezes amaldiçoado de amante e vampiro?” O silêncio pairou entre eles enquanto o vampiro se encolhia, oprimido pelo peso da tristeza. O padre tentava processar tudo o que ouvira, na esperança de que surgisse, por fim, um bom conselho que pudesse trazer paz a seu amigo, que pela primeira vez em dezenas de anos lhe procurara para abrir o coração. Ainda sem saber o que dizer, saiu do confessionário e deu a volta, indo se ajoelhar na frente do outro homem, o imortal.

O vampiro não aparentava trinta anos, tinha os cabelos castanhos compridos e fartos, vestia um manto de boa seda negra e seus olhos pareciam perfurar as almas de quem ousava fitá-los. O padre já ultrapassava sete décadas, uma verdadeira proeza para os homens de sua época. Por sobre o corpo iam robes de tecido rústico, Sua barba branca era cheia e embaraçada, contrastava com a cabeça, quase completamente lisa, à exceção de finos arcos brancos sobre as orelhas e os poucos fios aglomerados que ainda se agarravam à nuca. Tinha o rosto inteiro cartografado por rugas, seus tornozelos e joelhos, ombros, pulsos e até a coluna doíam constantemente, e o fizeram com mais vontade quando ele se ajoelhou na frente do vampiro. Tinham exatamente a mesma idade, conheciam-se desde sempre, embora agora, frente a frente, não poderiam ser mais diferentes, e no entanto, o ar em volta deles estava carregado de empatia e compaixão. Quando o silêncio começava a parecer insuportável, mesmo sem saber o que dizer, o padre falou, com uma lágrima incontrolável rolando-lhe quente pela face esquerda.

“Filho... meu amigo, seu destino é cruel. Sua solidão não se compara a nenhuma já vista em uma alma mortal, e eu conheço todas. Escuta com atenção, já não tenho autoridade para lhe conceder penitências. Ore se desejar, mas sua alma está além do poder de qualquer sacerdote. Agora só Deus pode julgar seus pecados e decidir o que será de sua alma. Não me sinto sequer no direito de mandá-lo embora, afinal, o descanso eterno me espera, mas e você?” O padre se entregou ao choro, sentindo dentro de si as pesadas dores do amigo, e também a angústia  de desejar ajudá-lo e não poder.

O vampiro se ajoelhou e abraçou o padre, grato por sua compaixão, emocionado por suas lágrimas. O padre era assim desde criança, sempre preocupado com os outros, mesmo agora quando seu amigo nem era mais humano e trazia em seu encalço um enorme rastro de sangue e pecado. Repetiu em sua mente as últimas palavras do padre, e decidiu que era hora de tomar o destino de surpresa, contra atacar no ponto fraco, onde Deus jamais esperaria um golpe. Quando amanheceu, saiu da igreja, deixando o padre dormindo no confessionário, e caminhou para o Sol. Sentiu o corpo arder, por dentro e por fora das sedas, caiu sobre os joelhos e esmurrou a terra, mas não fugiu, não desistiu. Quem finalmente reconheceu a derrota e recuou foi a dor, o fogo. Estava completa a sua penitência. Não sentiu mais nada.

domingo, 28 de julho de 2013

Primeiro

- Devíamos ter comprado um chocolate. - eu disse, para a garota que conhecia há oito meses e estava, pela segunda vez, sentada do meu lado no cinema, dessa vez ela usava uma blusa preta com alças nos ombros, bem justa e decotada.

- Verdade, a gente não pensou nisso... - ela respondeu com o tom reticente que era característico do fim d suas frases mal pronunciadas. Desde pequena ela tinha problemas de dicção e errava algumas letras. Além de engraçado, eu achava aquilo lindo.

- Mas eu pensei. - rebati, sacando do bolso uma pequena barra de Sensação, que nós dividimos no escuro. Lá na frente, na grande tela, passava a versão moderna de "A Fantástica Fábrica de Chocolate", com Johnny Depp no papel de Willy Wonka, e os inúmeros estímulos gastronômicos daquela indústria miraculosa nos deixaram com água na boca.

No futuro eu viria a saber que ela não era muita fã de Sensação, mas que comeu assim mesmo e não falou nada para não estragar a beleza do momento. Não é uma graça?

O filme acabou, mas eu ainda estava em estado de atenção. Eu queria agarrá-la, beijá-la, levá-la para a minha casa, mas como? Jovem, bobo, inexperiente e apaixonado, uma combinação que por vezes mais atrapalha que ajuda ao lidar com as mulheres.

Ela me acompanhou até a entrada do metrô, onde paramos para nos despedir, encarando um ao outro. Tínhamos dezesseis anos, conversávamos ao telefone todos os dias, por duas ou três horas, logo, quando eu a encontrava, não havia o que dizer, com meu cérebro gritando os mais diversos comandos de avançar e recuar, enquanto olhos castanho claros cheios de ansiedade se fixavam nos meus.


Deixei o instinto me guiar, levei a mão direita ao rosto dela, para não errar a boca com os olhos fechados. Beijei. Abri demais a boca, ela gostou, não porque o beijo tivesse sido bem dado, mas porque tinha lido numa revista que os meninos abriam demais a boca para beijar quando estavam ansiosos. Para ela, era a prova de que queríamos a mesma coisa.