*Esta é uma obra de ficção, quaisquer
semelhanças com pessoas, entidades, locais e eventos reais são mera
coincidência, bitch*
Beatriz assistia assustada, ainda com dez
anos de idade, enquanto sua mãe a puxava pela mão e se afastavam pela calçada
da Avenida Paulista. De repente ouviu o cras
característico de vidro sendo estilhaçado. A loja do McDonalds onde há pouco
estivera comendo com a mãe estava sendo destruída à marretadas por um grupo de
pessoas vestidas de preto, com capuzes e lenços no rosto. Era vinte de abril de
dois mil e um, e os adeptos do Black Bloc
faziam sua primeira aparição pública no Brasil, protestando, a seu modo
agressivo, chocante e profundamente simbólico contra a aprovação da Área de
Livre Comércio das Américas, uma política internacional amplamente criticada.
Os manifestantes não machucaram ou sequer ameaçaram os clientes do restaurante,
apenas destruíram sua fachada.
Outras fachadas de grandes lojas franquiadas
multinacionais, e também agências bancárias, foram quebradas naquele dia, e
Beatriz assistiu a boa parte das ações, enquanto a mãe tentava mantê-las longe
da bagunça e em segurança até chegarem ao Metrô. Aquelas cenas jamais saíram da
cabeça da menina, que desde pequena era acusada pelos pais e familiares por
“pensar demais” e “nunca ficar feliz com nada”. Principalmente uma das figuras
de preto, que brandia vigorosamente a pesada marreta de cabo longo contra a
vidraça do McDonald’s. Apesar do rosto coberto, as curvas sob as roupas pretas
e o tom característico de sua voz a bradar evidenciavam uma mulher. Para
Beatriz, aquela era uma mulher que homem nenhum ousaria tentar intimidar ou
agredir, e ela queria ser assim quando crescesse.
Com o tempo, descobriu o que era ser um Black Bloc e a ideologia anarquista e
atuante da tática de protesto lhe caiu como uma luva. Até tentara sair como Black Bloc em pequenos protestos às
vezes, mas normalmente acabava sozinha, e a força desta estratégia única de
manifestação está justamente no coletivo, na massa de pessoas não
identificáveis que ousavam pôr-se, com a cara coberta e a coragem evidente,
entre os manifestantes comuns, pacíficos e a polícia repressora.
Mas em junho de dois mil e treze, prefeitos
de várias cidades do Brasil optaram por aprovar um controverso aumento no valor
das passagens de ônibus, trens e metrôs. Logo depois disso, nas grandes
cidades, começaram algumas passeatas e ocupações de vias públicas em protesto
contra os novos preços. O número de manifestações foi aumentando, e também a
quantidade de cidades atingidas. Logo não eram mais apenas pequenos grupos, mas
enormes multidões, e os vinte centavos acrescidos nas passagens eram só a gota
d’água para toda uma miríade de insatisfações dos brasileiros contra sua
administração pública. Algumas vezes, na Avenida Paulista, os protestos
chegaram a contar com centenas de milhares de pessoas.
E no meio deles estavam os Black Blocs, que, vez ou outra, chegavam
a ser cem ou duzentos. Parece pouco, mas uma vanguarda de cem ou duzentas
pessoas de preto, encarando as tropas de choque das polícias pelo país inteiro
conseguiam motivar outros participantes e até combater efetivamente a polícia,
para minimizar os danos causados por ela nos manifestantes “civis”. No dia dez
de junho, aconteceu um dos primeiros grandes protestos na Avenida Paulista, que
foi fortemente reprimido pelo choque. Até na Alameda Santos, quem estava dentro
da Livraria Cultura do Conjunto Nacional podia ver pelas grandes vidraças uma
falange de policiais bem equipados investindo em linha contra os manifestantes.
Lá no meio, de moletom preto, mochila nas costas, capuz e um lenço encharcado
de vinagre sobre o nariz e a boca, Beatriz atingia o escudo de um policial com
um pedaço de corrimão, tirado de uma das escadarias das estações de Metrô
próximas, enquanto outros companheiros Black
Blocs pichavam paredes, quebravam vidros e arremessavam pedras.
Da calçada, tentando encontrar esconderijos
de onde pudesse sair ileso e ao mesmo tempo tirar algumas boas fotos, e talvez
conseguir uma narrativa descente do que estava acontecendo, Tiago, um
jornalista, viu quando Beatriz, já desvencilhada daquele policial, chutou de
volta, gritando, uma bomba de gás lacrimogêneo que outro militar havia atirado.
Parou no meio do movimento de agachar-se atrás de uma grande lixeira de
concreto, encantado pela visão que teve de Beatriz. Ela era baixa, um metro e
sessenta talvez, tinha seios pequenos que não faziam tanto volume no moletom
preto, era um pouco gordinha e dona de um largo e bonito quadril, no topo de
coxas e pernas bem delineadas. Brandia um cilindro de metal com a ponta
quebrada que ele não sabia de onde era, e algumas mechas de cabelo ruivo
escapavam do capuz e do lenço. Tiago só voltou à realidade quando uma bala de
borracha jogou-o no chão ao acertar seu ombro quase que de raspão. Praguejando,
ficou atrás da lixeira e tentou tirar uma foto de sua nova musa de preto, mas
ela já havia corrido para longe.
No dia seguinte, quando chegou à redação,
tentou escrever sobre o que tinha visto na noite anterior, mas nada lhe vinha à
cabeça – a não ser Beatriz. Nem sabia o nome dela, mas sabia que jamais uma
mulher havia o impressionado tanto, era muita fúria, muita coragem, muita
ferocidade, algo que quase não condizia com as generosas curvas de seu corpo
feminino. Imaginava-se lutando lado a lado com aquela mulher, como Will e
Elizabeth em Piratas do Caribe. Sem
conseguir resistir por mais tempo, escreveu uma curta matéria sobre a guerreira
de preto, colocando no meio do texto algumas outras informações e reflexões
sobre o momento que viviam. É claro que seu editor detestou o texto. Depois de
um ano de estágio, após um concorridíssimo processo seletivo, Tiago finalmente
fora efetivado na equipe da revista Veja, um sonho que alimentava há muito
tempo.
Porém, agora esse sonho não parecia
significar mais nada. Depois do fim de semana abandonou a Editora Abril e
passou a se dedicar a cobrir, independentemente, a onda de protestos que
acontecia em São Paulo, sua ideia era manter um tipo de “blog dos protestos”, e
talvez escrever um livro-reportagem quando tudo acabasse. Mas no fim das contas
isso era só uma desculpa para ir atrás de Beatriz, que ele passou a procurar em
todos os protestos, fotografar e registrar as ações para contar em seus textos
depois. Tiago se tornara obcecado por ela, mas não tinha coragem de ir falar
diretamente com sua paixão platônica.
Depois que a maioria das prefeituras revogou
o aumento das passagens o contingente dos protestos diminuiu consideravelmente,
mas ainda assim muitos iam para as ruas, incluindo Beatriz e os Black Blocs. Sem liderança oficial, com
as datas e locais de suas ações combinados e divulgados na internet, os homens
e mulheres de preto mantinham sua resistência, seja em interdições na Avenida
Paulista ou acampamentos no Congresso Nacional e em frente à residência do
Governador do Rio de Janeiro. Os Black
Blocs continuaram atuando, arautos da anarquia e da insatisfação pública.
Rotulados como “vândalos violentos” pela mídia, e toda sorte de adjetivos
depreciativos como “arruaceiros”, “baderneiros” e alguns até foram presos por
formação de quadrilha armada – um crime inafiançável.
Quase três meses depois de os protestos
começarem, chegou o Dia da Independência, sete de setembro, e desde cedo os Black Blocs, entre outros manifestantes,
já se concentravam no vão livre do MASP. Claro que Beatriz estava lá, ela
adorava a ação das manifestações, sentia-se viva e livre, lutando, com as
próprias mãos, por um país melhor. Tiago continuava seguindo a garota, ainda
tirando fotos, sem saber o que fazer para falar com ela. Como um homem normal e
medroso como ele poderia tomar a iniciativa de puxar conversa com uma mulher
tão forte e imponente? Mas ainda assim não conseguia se afastar dela, era
atraído por seus olhos castanhos de caçadora, com sobrancelhas crispadas, pelo
fogo de seus cabelos, como se o próprio ardor de seus ideais escapasse de sua
mente.
No sete de setembro, as manifestações já eram
esperadas, e as autoridades mandaram duzentos e cinquenta policiais militares
para a Avenida Paulista. Isso não intimidou os Black Blocs, de maneira alguma, e assim que a polícia tentou conter
o avanço dos manifestantes pela Avenida, lá estavam os anarquistas de preto,
novamente à frente de todos, com armas e projéteis improvisados, confrontando
os escudos de ferro, cassetetes e balas de borracha. Após o primeiro choque,
Tiago se esforçou para manter a mira de sua câmera em Beatriz, mesmo quando as
fileiras de negro se quebraram contra as da polícia. E assim permanecia em seus
cantos semiprotegidos, acompanhando a história enquanto era feita, pelas belas
mãos e pernas de uma mulher.
Mas desta vez haviam muitos policiais. Pelo
menos um para cada Black Bloc, e logo
os anarquistas estavam perdendo, tendo de fugir e constantemente se reagrupar
uns aos outro para não serem completamente subjugados. Beatriz foi atingida por
um cassetete e teve de se apoiar em um joelho para não cair, mas quando o
policia que a acertara investiu novamente ela o surpreendeu com um soco no
rosto, o policial caiu no asfalto ,cassetete e capacete se soltaram e rolaram
pela avenida. Para reagir depressa, antes que Beatriz lhe atingisse de novo, sacou
do da cintura um revólver que deveria estar carregado com balas de borracha
como os de seus companheiros, mas quando o tiro atingiu a Black Bloc no peito, ela não caiu para trás como o repórter caíra
na noite em que a viu pela primeira vez. A bala entrou em seu peito, e um
filete de sangue escapou por sobre o moletom enquanto ela desmontava sobre os
joelhos, e por fim caía de bruços no chão. Enquanto o policial, ainda em
frenesi, mantinha o revólver apontado para o nada.
Tiago assistiu a tudo, incrédulo. Quando viu
o homem atirar não se conteve mais, gritou e saiu correndo por entre a batalha
que ainda se desenrolava. Segurando a pesada câmera pela correia de segurança,
atingiu com ela a cabeça do policial assassino, e ele caiu a seu lado quando a
câmera se estraçalhou no impacto. Depressa, se atirou por sobre Beatriz e
virou-a de barriga para cima, seus olhos castanhos estavam abertos e vazios,
com um deles inchado devido ao golpe, uma poça de sangue já se formava embaixo
de seu corpo e algumas pessoas, de ambos os lados, já paravam as agressões ao
perceber que a menina estava morta.
Chorando, Tiago tirou o lenço do rosto dela,
e pela primeira vez viu seu nariz e sua boca, que estava suja de sangue. Seu
nariz era fino e delicado, condizente com a boca pequena e cor-de-rosa, com uma
pinta sobre o lábio superior, do lado esquerdo. Ele a abraçou, tentando ouvir
ou sentir respiração, mas não havia mais vida nela. Delicadamente, fechou suas
pálpebras e afagou seu rosto inchado. Sentindo um imenso remorso e
arrependimento por não ter sequer tentado conhecê-la quando podia, segurou o
lenço dela com as duas mãos, dobrando o na diagonal, depois cobriu com ele o
próprio rosto e tossiu quando o cheiro do vinagre invadiu suas narinas.
Levantou, colocando o próprio capuz por sobre a cabeça. Os policiais
aproveitavam a breve hesitação perante a fatalidade para imobilizar alguns dos
manifestantes. Imbuído de uma nova coragem e uma ira mais extensa que toda a
Avenida onde guerreavam, agarrou o cassetete no chão e investiu, aos gritos,
contra os soldados.
Excelente texto, a história me prendeu do ínicio ao final. Belo enredo!
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