terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Praga



Daiana contemplou seu trabalho com um meio sorriso de satisfação. Estava dando tudo certo. No chão, os vários símbolos haviam sido cuidadosamente desenhados com cera, giz, sal, carvão e mais uma miríade de pós e pedras. Os símbolos ficavam entre dois círculos, um grande e um pequeno. No pequeno, um grande pote de vidro com tampa de rosca guardava uma centena de baratas vivas, que se remexiam umas por sobre as outras, doidas para sair daquela prisão transparente. No círculo maior um homem jazia inconsciente, com pulsos e tornozelos amarrados, caído em posição fetal. Daiana se ajoelhou ao lado do homem. Ela segurava uma grande barata de Madagascar nas mãos, acariciando sua cabeça minúscula entre as antenas com o dedo indicador. Daiana gostava de baratas por todo mundo as detestava, isso fazia com que ela se identificasse com esses insetos. Nunca tivera medo delas, nem nojo, por vezes apreciava sua companhia silenciosa. E agora ainda poderia usá-las para punir o mau-caráter caído no círculo grande desenhado no chão.

“Vai”, disse ela para a barata de Madagascar. O inseto abriu as grandes asas retas e voou por pouco tempo, aterrissou sobre uma orelha do homem, sentindo sua pele com as antenas, e ficou ali. Com a mão que antes segurava a barata, Daiana sacou uma faca grande e afiada, encostou sua ponta contra o pescoço, logo abaixo da orelha de onde a barata observava, e então empurrou a lâmina, lentamente, mas com firmeza. Primeiro um filete de sangue escorreu, depois as camadas de pele cederam, a faca desceu rápida pra dentro do pescoço, e o sangue borbulhou para fora. A grande barata desceu duas patas da orelha e abaixou a cabeça para o sangue que vertia da ferida. Em goles minúsculos, a barata se alimentou do sangue quente, o homem engasgou, seus olhos se abriram arregalados por um momento, Daiana retirou a faca, aumentando a torrente de sangue e a poça que ele formava por baixo. O homem tossia mais sangue. Daiana pegou o pote de baratas e rapidamente desrosqueou a tampa. Libertando as baratas frenéticas.

Daiana se ajoelhou, deixou que as baratas a cobrissem, tateassem sua pele nua com as antenas, mordiscassem seu peito e roessem seus lábios. Para Daina, era como ser beijada por uma centena de bocas por todo o corpo, foi um momento de êxtase. Então, todas as cem levantaram voo, em uníssono, e logo depois se jogaram na poça de sangue no chão, bebendo furiosamente, rolando por sobre o vermelho espesso, pisando umas nas outras, saciando-se de sangue condenado. Daiana se levantou, nua, excitada, e observou enquanto a vida fluía do homem para as baratas. Novamente ela se ajoelhou e esperou até que o homem estivesse definitivamente morto, então as baratas pararam de se mexer, viraram-se para ela, todas ao mesmo tempo, depois olharam o corpo, sentiram o sangue com as patas e as antenas. De repente, levantaram voo, todas juntas, chefiadas pela grande barata de Madagascar, e fugiram pela pequena janela circular aberta, deixando para trás um cadáver de outra vida e a um sorriso malicioso no rosto de Daiana.

O homem amaldiçoado chegou em casa no meio da madrugada, trôpego de cansaço, desnorteado, não conseguia sequer articular pensamentos complexos. Sua cabeça parecia mais lacônica do que de costume, repetindo palavras soltas como “fome’, “cama” e “Marisa”. Sem perceber foi para os fundos da casa, era o procedimento padrão de quando voltava tão tarde, já que a porta da frente era muito barulhenta. Não conseguiu abrir a porta. Não encontrou e nem tinha a menor ideia de onde tinha deixado as próprias chaves. Esgueirou-se de qualquer jeito mesmo pela pequena janela do banheiro que sempre ficava aberta. Sempre achara que aquela janela era pequena demais para uma pessoa, pelo jeito estava errado. “Cadeado”, pensou vagamente, tentando não se esquecer.

Mas assim que se deu conta de estar mesmo dentro de sua casa foi invadido por uma súbita e gigantesca saudade de sua esposa Marisa. Aquela noite havia sido louca e terrível e tudo o que ele queria era deitar ao lado dela na cama e abraçá-la para dormir envolto em seus cabelos cheirosos. Mesmo do banheiro conseguia sentir aquele aroma doce que lhe era tão familiar. Subiu voando as escadas até o quarto, desesperado, se batendo na parede às vezes. Chegou ao quarto, a porta entreaberta não foi obstáculo e assim que entrou viu Marisa, deitada na cama, adormecida, esparramada, ofegante de sono e calor. A pele morena quase que nada coberta por uma camisola branca de alcinhas fina e desbotada. Instintivamente seus planos mudaram, não conseguia mais resistir àquela fêmea saudável e indefesa. O homem amaldiçoado avançou sobre ela, sentindo seus pés e pernas, entrando pela camisola. Não havia calcinha. Tateando foi subindo por seu corpo, sentindo cada poro coberto de colônia, chegou ao pescoço, à boca, beijou cada cantinho dos lábios e mordiscou de leve a língua, fez a escalada derradeira pelo nariz e contemplou seus olhos fechados. Sem nunca se desencostar do corpo da mulher, começou a vasculhar sua intimidade, procurar o calor e a umidade reconfortantes. O homem amaldiçoado queria amar daquela vez como se fosse a última, beijá-la como se fosse a única.

Marisa acordou de repende no meio da noite, sentindo um desconforto estranho, como se vários insetos caminhassem sobre ela. Abriu os olhos e viu, a dois centímetros deles, a grande barata de Madagascar que comandava o enxame de uma alma só. Assustada, tentou fugir e ao se mexer percebeu que dezenas de baratas lhe cobriam o corpo, roíam os lábios, roçavam-lhe asas marrons nos mamilos e tentavam entrar por entre suas coxas. Uma delas parecia já ter conseguido. A esposa traída gritou e correu, sacudindo-se e estapeando-se enquanto avançava para fora do quarto. Com os olhos fechados, em pânico pelo nojo, Marisa levou a mão à orelha direita e percebeu que ali ainda estava grudada a grande barata de Madagascar. Arrancou-a, em pânico, apertando os olhos, tremendo, chorando, acelerou ainda mais, tropeçou no primeiro degrau das escadas e rolou até o térreo, batendo a cabeça várias vezes nas quinas de azulejo. Morreu com uma expressão cheia de medo, nojo e desespero no rosto.

Quando o homem amaldiçoado percebeu o que lhe havia acontecido, depois de matar a esposa, começou a pensar no que faria a seguir. Viver naquela forma de enxame de baratas seria impensável. Sentia sua consciência se desvanecendo aos poucos. Seus pensamentos deixaram de ser palavras isoladas e foram se tornando imagens, cheiros, sons e sensações. Não conseguia ler, mal conseguia reconhecer as pessoas. Pareciam todas iguais, um enxame de uma praga gigantesca muito maior do que ele próprio, andando e correndo desvairadas pelas ruas, prédios e casas. Mas havia um lugar do qual ele se lembrava, a casa de Daiana.

O homem amaldiçoado nunca levara as “bruxarias” da amante a sério. Mas achava divertido transar com ela, com símbolos tatuados ou pintados pelo corpo. Uma vez ela pintou um símbolo na barriga dele, com uma mistura líquida que ele preferiu não saber o que continha. Nesse dia sua ereção foi a mais duradoura de toda a sua vida. A mágica fora mais eficiente que qualquer pílula azul, mas ele negou. Mentiu para si mesmo que fora apenas um efeito placebo, uma sugestão psicológica que o fez alcançar, sozinho, o ápice de sua virilidade. É claro que isso nunca mais aconteceu, nem quando estava com a amante, nem com a esposa. Olhando em retrospectiva, juntando tudo, agora ele percebia que devia ser tudo verdade. Por Deus, Daiana trabalhava como cozinheira, quantas pessoas ela pode ter enfeitiçado no trabalho? Felizmente um vingador silencioso estava a caminho.

Uma nuvem de baratas voando daquele jeito esquisito, com as asas zunindo e os corpos meio pendurados, chegou à casa de Daiana. Baratas podem ficar dias sem comer, graças à gordura que carregam por dentro, aquele creme branco que suja as solas dos chinelos quando uma delas é esmagada. Uma barata americana comum tem uns três ou quatro centímetros. Numa casa, há pelo menos uma centena de lugares onde uma delas pode se esconder. Até aqui nenhuma novidade, mas era essa a estratégia do homem amaldiçoado. Esconder-se na casa da bruxa e esperar, esperar até o momento certo, quando ela não tivesse como se defender.

A essa altura, já estava acostumado a seu novo corpo. A grande barata de Madagascar era como a cabeça, e as outras eram como dezenas de pequenas mãos (algumas das cem já tinham morrido), mãozinhas marrons de seis dedos, asas e antenas. Ele entrou quando ela estava fora e se escondeu. Os humanos que temem baratas perderiam completamente a cabeça se soubessem quantas delas estão escondidas a apenas alguns metros sem que eles saibam. Em cima do armário, evitando meticulosamente a teia da aranha que também vive ali. Nas fretas escuras e poeirentas entre os móveis. Dentro de botas militares, sapatos de dança e outros tantos pares que ficam meses sem uso na sapateira. Os quadradinhos escuros da mini adega no armário da cozinha. Ralos, pias, atrás das privadas e em cima dos chuveiros. Atrás das naturezas mortas penduradas na parede da sala. Dentro de abajures que sempre ficam apagados. Louças velhas lá no fundo escuro do armário. Caixas de papéis velhos, por Deus, como elas adoram as caixas de papéis velhos. Os olhos humanos miram sempre à frente, no máximo em volta. Atrás, em cima, embaixo e dos lados, centenas de baratas estão escondidas ao redor de cada ser humano.

O plano corria bem, até o homem amaldiçoado resolver testar a reação de Daiana às baratas. Lançou voando uma de suas mãos cascudas até ela, E pousou na porta da geladeira, depois de passar bem em frente aos seus olhos enquanto ela cozinhava. Ela se sobressaltou e soltou o talher que tinha na mão, ele caiu sobre um ovo e o quebrou. Daiana olhou para o lado e abriu um sorriso. Com dedos delicados ela retirou a pequena barata da porta da geladeira e a afagou carinhosamente entre as asas enquanto ria. A barata abriu as asas e aproveitou o carinho. Daiana chegou com o rosto bem perto da barata, sentindo seu cheiro, e por um segundo o homem amaldiçoado pensou que ela ia devorá-la. Ela apenas cheirou, mas logo depois agarrou firmemente as asas do inseto com dois dedos em pinça e olhou em volta, sorrindo, com aquele olhar sexy e insano que ela fazia quando pensava em depravações em geral. Daiana gritou alguma coisa que o homem amaldiçoado não compreendeu, olhou em volta, como que procurando algo, depois pegou o talher que tinha derrubado, e continuou procurando alguma coisa nos cantos da cozinha. Só que não era um talher, era um pequeno maçarico para, em um futuro não muito distante, tostar a casca crocante do crème brulée que estava a ponto de começar a cozinhar.

Daiana aproximou o maçarico da barata que se remexia furiosamente entre seus dedos, e então o ligou. Uma pequena chama azul precipitou-se da ponta do mecanismo, como a glande de algum demônio não circuncidado. A gordura por dentro da casca da barata ferveu e borbulhou, enquanto ela agonizava, sendo frita de dentro para fora uma minúscula coluna de fumaça subiu se seu corpo. Enquanto um som de tsssssss de algo morrendo queimado fez-se entrar pelo ouvido de Daiana. O som era muito baixo para chegar ao resto da casa, mas mesmo que fosse alto como uma britadeira o homem amaldiçoado não teria escutado. Estava ocupado demais sentindo a si mesmo ser queimado vivo para reparar. Quando uma das baratas morria sua dor era compartilhada por todas e ficava difícil, por alguns instantes, manter o controle do enxame. Algumas das baratas saíram cambaleando, ou voando trôpegas, desorientadas pela dor de sua companheira morta.

Daiana gritou de novo, dessa vez até mesmo uma barata conseguiria entender o “A-HÁ!” que ela soltou. Era isso que ela queria. De alguma forma percebera que aquela barata curiosa na geladeira era uma das cem que usaram alguns dias antes num feitiço de vingança contra o amante que a dispensara, alegando santamente que não queria mais trair a esposa e que iria se esforçar para ser um bom e fiel marido. A bruxa parou de fritar a barata, que neste ponto já estava bem...  ao ponto, então enfiou-a na boca e mastigou, ouvindo a crocância de suas patas e de sua casca tostada. Saboreou a barata por alguns instantes e engoliu, para horror do homem amaldiçoado. Mesmo em sua condição atual achava absurdamente repugnante se alimentar de uma barata. Mas logo sua sensação de nojo alheio foi interrompida por um novo relâmpago de dor. Uma de suas mãos estava sendo esmagada entre o chão da cozinha e o pé nu de Daiana.

Numa fúria sádica e risonha, Daiana saltitou pela cozinha, esmagando Baratas tontas sob seus pés descalços. O homem amaldiçoado adorava beijar aqueles pés quando ela ficava sobre ele na cama e os esfregava em seu rosto. Vamos ver o que acharia disso agora. Além disso matava mais algumas que voavam em espirais desconexas, batendo palmas, ou com as mãos nuas bem abertas, esmagando aquelas que estavam na parede. A dor era insuportável, se ainda fosse racional, se ainda tivesse sanidade, o homem amaldiçoado teria enlouquecido. Mas seus recém adquiridos instintos eram mais simples e diretos. Era um animal menor e mais fraco, acuado, sem qualquer possibilidade de fuga, encarando a morte, a resposta instintiva gritava em sua cabeça, um tipo de rugido sem som, urgente e furioso que só poderia significar uma coisa: “ATAQUE!


Ignorando a dor tanto quanto podiam, as baratas saíram voando a toda velocidade de seus esconderijos e avançaram contra o rosto de Daiana. Forçando a entrada em seus olhos, ouvidos, narinas e na boca. Daiana fechou os olhos com força e tentou tirar baratas das orelhas com as mãos. Cerrou os dentes e sentiu o gosto de gordura de barata crua na boca. Sim, baratas têm exatamente o mesmo sabor que você imagina que elas devem ter. Dezenas de baratas forçaram o caminho, Daiana tossiu e cuspiu algumas delas, mas não era suficiente. O homem amaldiçoado entupiu o esôfago e a traqueia de sua amante bruxa e assistiu de cima da geladeira, pelos olhos e antenas da grande barata de Madagascar, enquanto ela convulsionava e morria sem ar.

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